Valor Econômico, v. 20, n. 4849, 02/10/2019. Opinião

A desoneração da folha e seus efeitos na economia

Eduardo Fleury


A ideia de desonerar a folha de salários da contribuição previdenciária paga pelas empresas vem permeando o imaginário de empresários, políticos e ministros há muito tempo. O governo Dilma adotou um tipo de desoneração setorial que veio a ser muito criticada, mas agora tanto empresários quanto o atual governo têm falado em implementar novamente este modelo.

Para compreender os efeitos da desoneração da folha é necessário saber quem suporta efetivamente o ônus desta contribuição. Mesmo que recolhida aos cofres públicos pelo empregador, em teoria, a contribuição sobre folha pode ser suportada pelos trabalhadores. Inicialmente, um aumento da contribuição patronal diminuiria a demanda por trabalho em vista do aumento do seu custo, diminuindo assim o nível de emprego. No entanto, com o passar do tempo, os trabalhadores aceitariam uma redução de salário levando a taxa de emprego ao nível anterior. Neste caso, a contribuição seria suportada pelo trabalhador, o que facilitaria a manutenção do nível de emprego.

Apesar de evidências confirmarem a lógica acima, alguns estudos contestam esta conclusão. Estudo (Bozio et al, 2017) realizado com base na economia francesa entre 1976 e 2010 demonstrou que os aumentos da contribuição ocorridas em duas reformas no período foram em sua maior parte (de 55% a 88%) absorvidos pelos empregadores. No entanto, a mesma pesquisa demonstrou que os trabalhadores são mais propensos a suportar um aumento de contribuição por meio da redução de seus salários, caso a mudança na contribuição represente um claro benefício a ser recebido no futuro.

Podemos dizer que, no curto prazo, a rigidez do salário nominal pode restringir o repasse das contribuições para os trabalhadores, gerando desemprego. No longo prazo, contudo, a contribuição é transferida para os trabalhadores sob a forma de menores salários.

Já com a redução das contribuições, poderemos ter aumento de emprego e/ou aumento de salários. Dado o preço de mercado, o custo mais barato da mão de obra em decorrência da desoneração possibilitaria às empresas aumentar a produção, uma vez que a receita adicional seria superior ao custo decorrente da contratação de novos trabalhadores.

No Chile, durante os anos 80, houve uma redução substancial da contribuição sobre a folha de salários, de 30% para 5%, em razão da privatização do regime de previdência. Segundo Gruber (1997), a quase totalidade da redução das contribuições foi transformada em aumento de salários. Neste caso, o efeito de aumento de salários reflete o benefício futuro mencionado anteriormente. O trabalhador percebeu que a redução da contribuição representava uma perda de benefício (previdência pública) e “negociou” ao longo do tempo uma elevação do salário que deveria ser usada para pagar a previdência privada.

Assim, eventual redução na contribuição sobre a folha sem a perda de benefícios não deve ser vista da mesma forma pelo trabalhador, podendo resultar em aumento de emprego.

O Brasil implementou uma política de desoneração da folha para alguns setores de atividade (2011). Em substituição à contribuição de 20% sobre a folha, as empresas foram obrigadas a pagar uma contribuição cumulativa sobre o faturamento, cuja alíquota variava entre 1% e 2%. A desoneração gerou renúncia tributária substancial em um setor já deficitário, obrigando o Tesouro Nacional a repor as perdas. Segundo relatório da Receita Federal, em 2014 a renúncia atingiu R$ 22,1 bilhões de reais, representando 12,4% do arrecadado com a contribuição sobre folha no mesmo ano.

Segundo nota emitida pelo Ministério da Fazenda (2015) resumindo estudos realizados sobre os efeitos da desoneração, no melhor resultado foram gerados 131 mil empregos, algum aumento de salários e não houve resultado significativo em termos de melhora na balança comercial dos setores beneficiados. Considerando a renúncia fiscal, o custo para a geração de cada emprego ficou entre R$ 4,8 mil e R$ 5,6 mil por mês, 300% a mais do que o salário relativo a estes empregos (R$ 1,7 mil).

A proposta que vem sendo construída pelo governo federal pretende que a desoneração seja neutra do ponto de vista fiscal. A primeira proposta apresentada foi a recriação da CPMF, sobre a qual já comentamos em artigo neste mesmo espaço (Imposto Único e a Ilusão da Simplicidade). No momento em que escrevemos este artigo, o governo parece ter abandonado a ideia sem, contudo, apresentar outra proposta.

Após a crise de 2008/2009, foi estudada na Europa a ideia de desonerar a folha visando estimular a economia regional, mas mantendo o equilíbrio orçamentário. Sob o nome de “Desvalorização Fiscal”, a proposta buscava a desoneração da folha de pagamentos tendo como contrapartida a elevação da alíquota do IVA, mantendo a neutralidade fiscal.

Do ponto de vista macroeconômico, uma redução de tributos compensada por um aumento de outro tributo não representa estímulo fiscal capaz de gerar crescimento econômico. Ocorre que o IVA não incide sobre exportação, mas é cobrado na importação. Desta forma, as exportações estariam desoneradas na folha e do IVA, enquanto as importações estariam mais caras em função do acréscimo do IVA. Estes efeitos equivalem a uma desvalorização cambial, daí o nome de “Desvalorização Fiscal”.

Estudo do FMI (Engler et al, 2014) viu pouco efeito neste tipo de política em termos de competitividade externa, mas encontrou resultado substancial em termos de estímulo à demanda doméstica. O câmbio fixo e a rigidez salarial para cima são pressupostos importantes para o resultado desta política.

A contribuição sobre a folha de salários colabora para a regressividade do sistema, especialmente no Brasil onde a alíquota de 20% se aplica para qualquer valor de salário. A substituição pelo IVA pode apresentar alguma melhora na questão da progressividade, uma vez que a base deste imposto inclui não só salários, mas também o lucro extraordinário (economic rent).

No caso do Brasil, considerando um IVA com base ampla, teríamos que incrementar a alíquota em pelos menos 5% para substituir a arrecadação de cerca de R$ 200 bilhões (2017) da contribuição sobre folha. Estaríamos sobrecarregando demais a base do consumo.

No caso da adoção do IVA em substituição à tributação da folha devemos considerar que funcionários públicos, base relevante no consumo, iriam pagar parte da conta sem que tenham suas contribuições reduzidas. Também os governos, quando da aquisição de bens e serviços, estariam arcando com parte da conta da desoneração.

Outra possibilidade é a substituição da tributação sobre folha pelo Imposto de Renda que tende a ser ainda mais progressivo do que o IVA, embora possa causar algumas distorções em termos de comportamento tais quanto poupar ou investir.

Tudo considerado, e levando em conta a neutralidade fiscal, as evidências demonstram que a desoneração total da folha parece causar um efeito positivo na economia. No entanto, a busca de uma alternativa de financiamento é bastante desafiadora, já que a base do consumo está bastante sobrecarregada e o imposto de renda tem base muito reduzida no Brasil.

Eduardo Fleury é advogado e economista, sócio e head da área tributária de FCR Law, mestre e doutorando (S.J.D.) em Tributação pela Universidade da Florida (EUA), especialista em International Tax Planning pela Leiden University (Holanda) e especialista em Direito de Empresas Americano pela Harvard Extension School.