Valor Econômico, v. 20, n. 4821 23/08/2019. Legislação e Tributos , p. E2

O IVA e o setor público

 Eduardo Fleury


 

O setor público, além de ente tributante, também pode ser considerado um importante elo da cadeia em um IVA. Os governos compram bens e serviços e, neste sentido, poderiam ser equiparados a consumidores finais que deveriam suportar o ônus do IVA. No entanto, o setor público também produz bens e serviços fornecidos à população gratuitamente ou por meio do pagamento de preços e tarifas.

Os denominados bens públicos, tais como defesa e segurança pública, são fornecidos à população sem a cobrança de preço ou tarifa, sendo custeados pelos impostos. Por sua vez, serviços públicos como fiscalização, cadastramento e acesso ao Judiciário são custeados por tarifas ou taxas. Serviços públicos de coleta de lixo, fornecimento de água, esgoto, manutenção de estradas e similares são serviços normalmente custeados por tarifas, podendo também ser concedidos ao setor privado. Por fim, há os serviços públicos que podem ser prestados livre e simultaneamente pelo setor privado, como educação e saúde.

Considerando que o setor público presta diversos tipos de serviços, é possível incluí-lo na cadeia de tributação do IVA, havendo motivos razoáveis para tanto, como apresentado a seguir.

Considerando que o setor público presta diversos tipos de serviços, é possível incluí-lo na cadeia de tributação do IVA

Primeiramente, o setor público pode ser um elo importante da cadeia produtiva. Acessar o Judiciário implica importantes despesas para as empresas (custas judiciais, por exemplo). Serviços como água e esgoto são insumos importantes para a indústria. Adicionalmente, o setor público adquire insumos, bens ou serviços, que já foram tributados pelo IVA. Portanto, não tributar o setor público faz com que o IVA cobrado em etapas anteriores fique "encalhado" na cadeia, criando o efeito cascata no qual há a incidência de imposto sobre imposto.

Outra distorção causada pela não inclusão do setor público como contribuinte é a questão do auto abastecimento (self supply). Como exposto, os governos adquirem bens e serviços que serão tributados pela IVA. Considerando uma alíquota de 25%, haverá incentivo suficiente para internalizar a produção, principalmente dos serviços. Por exemplo, serviços de informática, tão essenciais ao setor público, poderão ser produzidos internamente via contratação de funcionários. Esta solução, no entanto, pode não ser ótima em termos de eficiência.

No caso dos serviços que também podem ser prestados pelo setor privado, o tratamento favorável ao setor público representa um desequilíbrio concorrencial importante.

As alternativas para o setor público no regime de IVA variam desde a não tributação até a tributação integral.

A tributação integral do setor público deveria ser aplicada apenas em relação aos serviços para os quais existe alguma remuneração vinculada, ainda que originada de verba pública. Assim, por exemplo, hospitais públicos, remunerados com base em procedimentos de acordo com a tabela SUS, seriam tributados. Os serviços públicos cujos custos não possam ser relacionados a nenhum tipo de remuneração específica (ex.: segurança pública) ficariam de fora da tributação. Tal solução diminuiria as distorções competitivas, assim como aquelas decorrentes do auto abastecimento (self supply).

Muitas destas atividades, provavelmente, iriam acumular saldos credores, que deveriam ser restituídos de imediato. O impacto desta primeira opção em termos de arrecadação não seria relevante, mas poderá haver algum desequilíbrio em relação à distribuição dos valores arrecadados entre os entes federativos.

Outra hipótese seria aplicar alíquota zero a todos os bens e serviços fornecidos pelo setor público. Neste caso, o IVA incidente sobre os insumos, bens e serviços utilizados pelo setor público seriam creditados pelos órgãos públicos e objeto de restituição imediata. Esta solução resolve a questão do auto abastecimento do setor público, uma vez que os créditos de IVA não se transformam em custos. Como na prestação de serviço não haverá cobrança do IVA (alíquota zero), as empresas privadas que usam o serviço público como insumo (ex.: serviços do Judiciário) não terão direito a crédito, mas a cadeia produtiva estará desonerada do IVA, em razão da devolução do crédito ao setor público, eliminando o efeito cascata.

A adoção da alíquota zero causa ainda a mencionada distorção competitiva, pois os serviços públicos não serão onerados pelo IVA, enquanto os mesmos serviços, se prestados pelo setor privado, serão tributados. Exemplo desta situação seriam os hospitais e escolas públicas. Embora possam existir competidores privados, a aplicação da alíquota zero ao setor público pode ser justificada, tendo em vista que, na maioria das vezes, o setor privado representa uma oferta "complementar" de serviços, não sendo concorrente direto dos serviços públicos.

Adicionalmente, podemos incluir como alternativa a isenção no caso de fornecimento para o setor público. Contudo, esta solução mantém a maioria das distorções, reduzindo o impacto somente em alguns casos.

As considerações acima são bastante genéricas e, para implantação de qualquer solução, ainda que seja a não tributação do setor público, dependeremos da definição de diversos conceitos pelo Direito. A começar pela própria definição de "setor público".

Por exemplo, devemos incluir agências reguladoras neste conceito? Entidade sem fins lucrativos prestando serviço público, qual é a definição? A interpretação destes conceitos sempre será matéria controversa no Direito. O fato da construção do IVA usar fundamentos econômicos nunca dispensará o uso do Direito como ferramenta essencial para a operação do sistema.