Valor Econômico, v. 20, n. 4820 22/08/2019. Legislação e Tributos , p. E2

Inflação regulatória e serviço público

André Luiz Freire 


 

Quem atua em setores de infraestrutura, certamente já escutou algo mais ou menos assim: "Não tem sentido essa atividade ser serviço público! Tem que ser atividade econômica!". Usualmente, o que se defende é maior liberdade na gestão de um serviço público (inclusive na formação de preços), sem ter que conviver com uma massa de resoluções, instruções, portarias e qualquer outra regulação pela administração pública. De fato, há uma "inflação regulatória".

Essa crença se funda, provavelmente, numa experiência ruim na gestão privada de um serviço público, como o portuário, o ferroviário etc. A reclamação é que essa inflação regulatória vem acompanhada de pouca racionalidade econômica e, mesmo quando há um interesse social por trás, a administração não pensa nas consequências desse ato (o que pode gerar outros problemas sociais). Para piorar, mesmo quando há um serviço público federal, de repente, surge uma regulação estadual ou municipal sobre o mesmo tema. E existe ainda o jabuti na árvore: um dispositivo meio estranho, que acaba atendendo, sem justificativa, a outro agente.

Diante dessa inflação regulatória, a forma de resolver esse problema seria qualificar juridicamente o serviço como "atividade econômica", sujeita a uma autorização. Não sendo mais serviço público, tudo estaria resolvido e a inflação regulatória diminuiria. Sem jabutis.

Uma revolução viria se a administração motivasse de forma detalhada esses atos. Em alguns casos, até há uma motivação, mas que costuma ser simplista

Infelizmente, o Estado não vai deixar de regular uma atividade apenas por ser qualificada como "atividade econômica". Ele vai regular! Veja o caso dos setores financeiro, de combustíveis, farmacêutico e de alimentos. O que não falta é regulação. Sempre que o Estado identificar um interesse coletivo envolvido na atividade, vai regular. E, em muitos casos, irracionalmente.

A solução para esse problema não passa pela transformação jurídica do serviço público em atividade econômica. Isso não resolve; só torna a aplicação das normas mais difícil e confusa. Esse problema é mais profundo e cultural. Nosso Estado regula muito, com boas ou más intenções, sendo ou não serviço público.

O que fazer? A solução não é muito simples, porque demanda uma mudança na cultura da administração. Uma revolução viria se a administração motivasse de forma detalhada esses atos. Em alguns casos, até há uma motivação, mas que costuma ser muito simplista e/ou abstrata. A solução, ao que me parece, passa pelo detalhamento, desde o processo de audiência e consulta públicas (para todos os atos, inclusive para os decretos do chefe do Poder Executivo), das razões para a existência de dado dispositivo (artigo, parágrafo, inciso e alínea) no ato.

Qual é o específico interesse coletivo que se visa a resguardar com dado dispositivo? Que dados empíricos foram usados para se chegar a tal regulação? Que relações de causalidade se procura estabelecer? Qual é o impacto econômico para o Estado e demais agentes? Será necessário reequilibrar contratos? Haverá maior arrecadação tributária? Quais são os benefícios esperados com dado dispositivo? Que alternativas foram avaliadas? Por qual razão elas não servem? Que critérios seriam usados para lidar com a vagueza inerente à linguagem, diminuindo as dúvidas na aplicação do ato? Quais malefícios seriam, em tese, compensados pelos benefícios globais gerados pela regulação?

Uma hipótese é que isso traria os seguintes efeitos: forçaria a administração a pensar com muito mais cuidado sobre o impacto e necessidade de suas ações. Seriam criados métodos de análise de impacto regulatório, como a análise de custo-benefício, dando mais segurança para os agentes públicos em relação aos órgãos de controle. Por outro lado, os sujeitos privados teriam maiores subsídios para controlar, inclusive judicialmente a ação da administração, mitigando o risco do jabuti. A tendência é haver maior planejamento e previsibilidade nas ações estatais e, com isso, um ambiente mais seguro juridicamente.

Em tese, o poder público poderia fazer isso independentemente de previsão legal ou constitucional. Afinal, existe o dever de motivar os atos administrativos. Mas difícil acontecer. Por isso, uma emenda constitucional seria o melhor instrumento para implementar essa medida, pois certamente seria vinculante para todos os entes federativos. Uma lei federal acabaria por ser vinculante apenas para a União e ficaríamos na dependência de os demais entes federativos editarem leis nesse sentido. Mas uma lei federal é melhor do que nada. Em verdade, algumas leis exigem análise de impacto regulatório e uma motivação um pouco melhor, mas não da forma como proposta aqui.

Isso sim levaria a uma revolução nas relações com o poder público, seja no serviço público, seja na atividade econômica. E então, poderemos lidar com outras questões que, no dia a dia, são equivocadamente vinculadas à ideia de serviço público, como a impossibilidade de liberdade tarifária, e a obrigatoriedade de concessão ou permissão em qualquer situação.