Valor Econômico, v. 20, n. 4889, 28/11/2019. Opinião, p. A19

O que fazer pelos direitos da criança

Florence Bauer


Há 30 anos, em novembro de 1989, a Assembleia Geral da ONU aprovava a Convenção sobre os Direitos da Criança. Tratado mais ratificado da história, por 196 países, a Convenção trouxe um novo olhar para meninas e meninos. Eles deixaram de ser considerados objetos de caridade e assistencialismo, propriedade dos pais, ou “menores” em situação irregular. E passaram a ser reconhecidos, oficialmente, como sujeitos de direito.

Em um alinhamento histórico, as discussões finais sobre a Convenção coincidiram com a Constituinte no Brasil. Os princípios do tratado global foram, então, refletidos no Artigo 227 da Constituição Federal de 1988 e no Estatuto da Criança e do Adolescente, de 1990, colocando a garantia dos direitos da criança e do adolescente como prioridade, dever da família, do Estado e da sociedade.

Passados 30 anos, o Brasil tem conquistas fundamentais a comemorar. Os esforços de diversas áreas levaram a uma redução histórica da mortalidade infantil. Entre 1990 e 2017, houve uma queda de 72% no índice de mortes de menores de 1 ano, passando de 47,1 para 13,4 a cada mil nascidos vivos (Sinasc). Com isso, de 1996 a 2017, mais de 820 mil bebês deixaram de morrer por causas evitáveis no país.

Houve, também, ganhos essenciais na educação. Em 1990, estar na escola só era obrigatório para crianças de 7 a 14 anos, e quase 20% delas estavam longe das salas de aula (Pnad). Em 2009, a escolaridade obrigatória foi ampliada para 4 a 17 anos. E, em 2017, menos de 5% das crianças e dos adolescentes brasileiros em idade obrigatória estão fora da escola no país (Pnad Contínua).

Os desafios, no entanto, não estão superados. Esses menos de 5% correspondem a quase 2 milhões de meninas e meninos que ainda têm seu direito à educação negado. A eles se somam milhões de crianças e adolescentes que estão na escola, mas sem aprender. Em 2018, segundo o Censo Escolar, 3,5 milhões de estudantes das escolas estaduais e municipais foram reprovados ou abandonaram a escola no Brasil.

O problema afeta principalmente meninas e meninos pobres, já privados de outros direitos. É esse, também, o público mais atingido pela violência. Nesse campo, o Brasil só piorou. De 1990 para 2017, os homicídios de crianças e adolescentes mais que dobraram no país. A cada dia, 32 meninas e meninos de 10 a 19 anos são assassinados no Brasil (Datasus). Em 20 anos, foram 191 mil vidas perdidas.

As vítimas, em sua grande maioria, são meninos, negros, que estão fora da escola e vivem nas periferias. Segundo levantamento do Unicef, somente na cidade de São Paulo, mais de 1 milhão de crianças e adolescentes moram em territórios diretamente afetados pela violência armada.

Para reverter esse quadro, é fundamental investir em políticas e projetos voltados à equidade e direcionados especificamente às crianças e aos adolescentes mais vulneráveis. O país está diante de duas janelas de oportunidade. Há que se consolidar e não perder os avanços alcançados na primeira infância, ao mesmo tempo em que faz-se necessário um olhar para a adolescência, investindo mais na segunda década da vida.

Dentro dessa agenda, a iniciativa privada tem muito a contribuir.

Dados do Censo Gife (Grupo de Institutos, Fundações e Empresas) 2016 apontam que há interesse dos investidores sociais privados em alinhar suas ações às políticas públicas: 86% das 116 organizações que responderam à pesquisa adotam esse tipo de estratégia. Poucas, no entanto, priorizam grupos étnicos/raciais (2%), por exemplo - os mais atingidos pela exclusão.

Há, portanto, espaço para fazer mais, com foco em quem mais precisa. Ao adotar práticas socialmente responsáveis - como a criação de programas para jovens aprendizes, a promoção da diversidade no ambiente de trabalho e o apoio a mulheres gestantes e lactantes -, a empresa dá oportunidades aos jovens e cuida da saúde de mulheres e bebês.

Ao investir em produtos que não prejudicam a saúde de meninas e meninos, zelar por uma rotulagem clara em cada embalagem e evitar propagandas voltadas ao público infantil, a empresa respeita os direitos da criança.

Ao promover a inovação e utilizar serviços, plataformas, pesquisas e conhecimentos para buscar soluções a problemas que impactam a vida de meninas e meninos - como o uso de ferramentas online na identificação de crianças fora da escola - a empresa ajuda a transformar realidades.

Ao apoiar financeiramente organizações que trabalham pelos direitos de meninas e meninos, a empresa potencializa os avanços nessa área.

E ao usar seus canais de comunicação e suas redes de relacionamento para disseminar mensagens relacionadas à educação, saúde e proteção para o público interno, colaboradores e clientes - e ao aproveitar sua liderança junto a governos para exigir a efetivação de direitos - a empresa impacta positivamente a vida de meninas e meninos.

Sabemos que os desafios são grandes, mas diversas medidas podem ser - e estão sendo - tomadas para que crianças e adolescentes possam ter as condições necessárias ao seu pleno desenvolvimento, de acordo com os princípios da Convenção.

Entre as ações em curso, destaco o encontro de lideranças empresariais que acontece hoje, quinta-feira, 28 de novembro, em São Paulo. A convite do Unicef, representantes de diversos setores se unem para discutir estratégias para que cada criança e adolescente no Brasil tenha todos seus direitos garantidos.

Encontros como esses, voltados para a troca de experiências e busca por sinergias, são essenciais para que o país dê o salto de qualidade que precisa, alcançando a todos, em especial os mais excluídos. A prioridade para o melhor interesse da criança, um dos princípios mais importantes da Convenção, precisa ser uma preocupação básica de todos e, mais que nunca, um compromisso do país.

Florence Bauer é representante do Unicef no Brasil.