Valor Econômico, v. 20, n. 4889, 28/11/2019. Brasil, p. A2

Um talão de cheque com R$ 7,5 milhões

Ribamar Oliveira


A partir do próximo ano, cada deputado federal e senador terá R$ 7,5 milhões de dinheiro público para distribuir, livremente, ao governador e aos prefeitos que o apoiam. Depois de aprovado o Orçamento da União de cada ano, o parlamentar definirá o valor que deseja transferir à prefeitura de sua escolha ou ao governador de seu Estado.

Ele mesmo vai autorizar a transferência, precisando, para isso, apenas digitar o CNPJ da prefeitura ou do governo estadual no Sistema Integrado de Planejamento e Orçamento (SIOP). É como se ele tivesse um talão de cheque com um limite para gastar de R$ 7,5 milhões.

Assim, cada parlamentar será uma unidade orçamentária. Serão, portanto, 594 unidades orçamentárias (513 deputados mais 81 senadores). E o total que poderá ser distribuído anualmente, livremente, chegará a R$ 4,455 bilhões - mais do que o dobro da verba destinada ao fundo de financiamento das campanhas das eleições municipais de 2020. Por mandato, o parlamentar terá o direito de distribuir até R$ 30 milhões. Serão R$ 15,390 bilhões para toda a Câmara e R$ 2,430 bilhões para os senadores em quatro anos.

O dinheiro sairá dos cofres do Tesouro Nacional e será transferido diretamente para os cofres da prefeitura escolhida ou do governo estadual. Os recursos poderão ser gastos pelo parlamentar sem definição prévia de finalidade. Ou seja, metade das emendas individuais que o parlamentar fizer ao Orçamento da União não precisará ter finalidade definida. A outra metade das emendas terá que ser aplicada na área de saúde. Ao todo, cada deputado ou senador tem direito a fazer emendas de de execução obrigatória no valor total de R$ 15 milhões.

Não será necessário que o prefeito ou o governador assine qualquer convênio com o governo federal para receber o seu pedaço dos R$ 7,5 milhões que serão distribuídos livremente pelo parlamentar aliado. O dinheiro pertencerá à prefeitura escolhida ou ao governo estadual no ato da efetiva transferência financeira, passando a fazer parte dos respectivos caixas, junto com os demais recursos.

A aplicação do dinheiro recebido pelo prefeito ou governador não será fiscalizada nem pelo Tribunal de Contas da União (TCU) nem pela Controladoria-Geral da União (CGU). Mas pelos respectivos órgãos de controle interno e pelos tribunais de contas estaduais e municipais. Como o dinheiro transferido não terá destinação específica, não se saberá posteriormente em que ele foi aplicado.

Tudo isso acontecerá se o Senado aprovar a proposta de emenda à Constituição (PEC) que altera o rito das emendas parlamentares ao Orçamento, já aprovada pela Câmara dos Deputados. A PEC inicial é de autoria da ex-senadora e atual deputada Gleisi Hoffmann (PT-PR) e já tinha sido aprovada pelos senadores, com substantivas modificações. Mas, como também foi modificada pelos deputados, terá que ser aprovada novamente pelo Senado.

A PEC vai entrar na pauta de votação do plenário do Senado na próxima semana, segundo informou o presidente da casa, David Alcolumbre (DEM-AP). O fato é que os parlamentares já estão fazendo emendas ao Orçamento de 2020 de acordo com o espírito das novas regras.

O casuísmo da PEC é de tal ordem que um de seus artigos determina que, nos seis primeiros meses do exercício financeiro subsequente ao da publicação da emenda, fica assegurada a transferência financeira em montante mínimo equivalente a 60% dos recursos que os parlamentares podem usar livremente.

Ou seja, se a PEC for aprovada neste ano, os deputados e os senadores poderão usar 60% dos R$ 7,5 milhões nos primeiros seis meses de 2020, que é um ano de eleição municipal. A lei eleitoral proíbe transferência de recursos federais aos municípios a partir de julho do próximo ano.

A proposta da ex-senadora Gleisi Hoffmann era diferente. Ela permitia apenas aos parlamentares destinar recursos, por meio de suas emendas, aos fundos de participação dos Estados (FPE) e dos municípios (FPM), indicando o ente federativo a ser beneficiado.

O texto foi alterado pelos senadores e reafirmado pelos deputados, com algumas mudanças. A nova redação prevê que as emendas individuais impositivas poderão ser de “transferência com finalidade definida” e de “transferência especial”. Pelas regras atuais, elas todas são do primeiro tipo.

Nesse caso, os recursos são vinculados à programação estabelecida na emenda parlamentar e são aplicados nas áreas de competência constitucional da União. O ente federativo beneficiado é obrigado a fazer projetos para a execução do serviço ou da obra, submetê-lo à análise técnica do governo federal e, só depois, pode assinar um convênio com a União para o recebimento dos recursos. A aplicação do dinheiro é fiscalizada pela CGU e pelo TCU.

No caso da nova figura da “transferência especial”, o parlamentar não precisa especificar, em sua emenda, a finalidade dos recursos. Ele precisa dizer apenas que os recursos se destinam aos municípios de seu Estado e/ou ao governo estadual. Depois, ele mesmo vai definir a quantia que destinará a cada ente federativo. O dinheiro é transferido, posteriormente, pelo próprio parlamentar ao beneficiado, que usará os recursos em sua própria programação orçamentária.

Com a PEC, fica evidente a concentração de poder na pessoa do parlamentar, que ganha o direito de distribuir recursos públicos em benefício de sua própria reeleição. Alguém no futuro certamente questionará a constitucionalidade desse dispositivo, pois ele dá vantagem aos parlamentares que estão no cargo, em detrimento de seus concorrentes nas disputas eleitorais.

Além disso, é possível questionar a PEC por ferir mais dois princípios constitucionais: o da transparência na aplicação dos recursos públicos, pois não será possível saber como o dinheiro transferido foi gasto; e da equidade no tratamento dos entres federativos, pois alguns municípios poderão ser beneficiados e outros não pelos recursos federais transferidos, uma vez que a destinação ficará ao único critério do parlamentar.

Ribamar Oliveira é repórter especial e escreve às quintas-feiras

E-mail: ribamar.oliveira@valor.com.br