Valor Econômico, v. 20, n. 4811, 09/08/2019. Brasil, p. A2

Agências reguladoras e a lição de casa

 Lu Aiko Otta 




A reforma da Previdência passou na Câmara e a equipe do ministro da Economia, Paulo Guedes, corre para finalizar os conteúdos para um grande anúncio da agenda pós-reforma. Com iniciativas na linha da desburocratização e desregulamentação de setores, a ideia é apresentar um horizonte para uma transformação da economia.

Mas o Brasil deverá chegar ao fim de 2019 ainda num fundo de poço histórico no quesito investimentos. A taxa ficará na casa de 1,9% do Produto Interno Bruto (PIB), calcula o economista Claudio Frischtak. Um volume insuficiente mesmo para compensar o desgaste do estoque existente. Em termos de infraestrutura, o Brasil anda para trás.

A expressão "choque de investimentos" é frequentemente ouvida da boca de Guedes. Mas esse choque depende de condições que ainda estão em construção. É um dever de casa extenso e difícil que busca, no fim das contas, convencer empresários a colocar dinheiro em empreendimentos que darão retorno em 20 ou 30 anos. E assegurar que não haverá solavancos no período. Interferir na regulação aumenta a incerteza

O histórico recente de concessões fracassadas do governo federal não ajuda. Na base dessa experiência frustrante estão decisões contaminadas por agendas políticas que fizeram vista grossa a fundamentos técnicos. É o tipo de problema que precisa ser evitado se o plano é atrair recursos privados para fechar um "gap" de R$ 10 trilhões em investimentos em infraestrutura nas duas próximas décadas, para colocar o Brasil em pé de igualdade com seus competidores.

Num mundo ideal, as agências reguladoras são fiadoras do governo junto ao setor privado. Servem para garantir a estabilidade de regras, a fundamentação técnica e o cumprimento de contratos.

Mas o papel delas é mal compreendido neste governo, como foi nas administrações do PT, avalia Frischtak. "Há uma confusão entre o que é regulação e o que é papel de governo."

Na quarta-feira passada, o presidente Jair Bolsonaro atacou a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), ao dizer que o registro de medicamentos demora. "Será que esse tempo todo justifica? Será que é excesso de zelo ou só está procurando criar dificuldade para vender facilidade?"

A Anvisa discute a liberação do cultivo da maconha para uso medicinal. Bolsonaro disse não ter sido eleito para legalizar drogas. Pelo mesmo motivo, o ministro da Cidadania, Osmar Terra, declarou no dia 10 de julho que a agência poderia ser fechada, caso autorizasse o cultivo da planta.

A "bronca" não é de hoje. Bolsonaro informou que, na época que "um tal de FHC" criou as agências reguladoras, fez um "discurso pesado" contra elas na Câmara.

Quando o Congresso aprovou, em maio, um novo marco regulatório para as agências, o presidente demonstrou incompreensão sobre o papel delas, aponta Frischtak, ao dizer que "travam ministérios" e se constituem em um "poder paralelo". Reclamou ainda que a nova lei o transformava em "rainha da Inglaterra", pois a nomeação de dirigentes seria feita a partir de uma lista tríplice.

O artigo da lista tríplice foi vetado na sanção da lei, em 25 de junho. Bolsonaro derrubou outro dispositivo ainda mais importante: o que dava autonomia orçamentária e financeira às agências. Algo que, mantido, tiraria o poder de pressão do ministro da área sobre o corpo técnico.

Com isso, o presidente abriu caminho para concretizar uma ameaça que fez dias depois: tirar da Agência Nacional de Cinema (Ancine) o comando sobre o Fundo Nacional de Cinema, por haver patrocinado produções como "Bruna Surfistinha".

A interferência da agenda política sobre a regulação econômica não é um bom sinal, avalia Frischtak. "São vasos comunicantes", disse. Tal como nos casos da maconha e de produções artísticas de temática considerada duvidosa, o pensamento do governo pode atingir também relações econômicas reguladas pelas agências. É, no mínimo, um ponto de incerteza.

E não está distante o dia em que isso de fato aconteceu. Responsável por uma grande fatia das concessões federais em carteira e por um estoque de projetos problemáticos leiloados no governo de Dilma Rousseff, a Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT) é um exemplo de entrelaçamento com a política. Já teve em seus quadros um ex-tesoureiro do PTB do Distrito Federal, Ivo Borges, e um ex-dirigente de time de basquete, Jorge Bastos. Com mandato até 2020, o atual diretor-geral, Mário Rodrigues, foi alvo da Lava-Jato.

Se na esfera federal há dificuldades em manter as agências no campo técnico, mais desafiador ainda será estruturá-las nos Estados. Mas este será um passo essencial para o "choque de energia barata" prometido por Guedes. Pela Constituição, concessões em gás são atribuição dos Estados.

Ciente do tamanho do desafio, o Ministério da Economia criou "incentivos" para governadores avançarem nessa frente. Aqueles que criarem agências reguladoras terão uma fatia maior da arrecadação do governo sobre a produção de óleo e gás.

No âmbito do Programa de Fortalecimento das Finanças Estaduais (PFE), será criado um ranking com aqueles que possuem melhores indicadores de aperfeiçoamento na regulação da distribuição de gás. A posição na lista será critério para a partilha dos recursos.

Esta é, portanto, uma péssima hora para lançar dúvidas sobre as agências reguladoras. A boa notícia é que, agora, há um olhar mais atento da sociedade sobre o ambiente para realizar novas concessões e parcerias público-privadas (PPPs).

Elas entraram no radar do presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia (DEM-RJ), que vem conduzindo uma agenda econômica independente do Executivo. Uma comissão especial foi instalada na Casa no dia 6 para tratar da legislação e eliminar pontos de dúvida na legislação brasileira. Vai funcionar em paralelo com as discussões das duas grandes reformas macroeconômicas em andamento no Congresso: Previdência e tributária.