Valor Econômico, v. 20, n. 4810, 08/08/2019. Brasil, p. A4

Decreto de relicitação é alvo de críticas
 Taís Hirata
  Lu Aiko Otta


 

Após dois anos e dois meses de impasse, o governo federal deu um dos passos mais aguardados pelo setor de infraestrutura e publicou, ontem, o decreto que regulamenta a devolução amigável de concessões. O objetivo é resolver um estoque enorme de projetos problemáticos, leiloados no governo de Dilma Rousseff (PT). No entanto, parte das companhias recebeu o texto com decepção e sinalizou que o embate judicial em torno dos contratos poderá continuar.

Entre os principais candidatos à devolução estão concessionárias de rodovias operadas por Invepar (Via040), Triunfo (Concebra), CCR (MSVia), Odebrecht (Rota do Oeste) e Ecorodovias (Eco101) - muitas delas estão a caminho da caducidade. No setor de aeroportos, há a concessão de Viracopos (operada por Triunfo e UTC), que está em recuperação judicial.

Em comum, esses negócios foram estruturados com premissas exageradamente otimistas de crescimento econômico. Foram frustradas pela recessão, pela redução dos financiamentos do BNDES e, em alguns casos, pela Lava-Jato.

Como já era esperado pelo mercado, a Invepar foi a única que já anunciou sua intenção em aderir à devolução nesses termos. Procuradas, as demais empresas afirmaram que ainda vão analisar o decreto para tomar uma decisão.

A lei que permitia a devolução e a relicitação dessas concessões foi publicada em 2017. A ideia era manter a concessionária apenas com a manutenção do empreendimento até que o trecho fosse novamente leiloado, evitando a caducidade, na qual o ativo é devolvido ao poder público, que passa a arcar com os custos da operação.

Apesar da publicação da lei, ela não teve efeito prático até hoje por falta de regulamentação. O decreto com as regras teve diversas versões, gerou embates internos no governo e chegou a ganhar o apelido de "decreto da semana que vem", devido às constantes promessas de que seria publicado em breve.

"Com o decreto, até a conclusão da relicitação e a assinatura do novo contrato de parceria, o antigo concessionário deverá assegurar a continuidade da prestação dos serviços essenciais, sob pena de aplicação de penalidades contratuais", afirmou o ministro da Infraestrutura, Tarcísio Gomes de Freitas, em nota divulgada por sua assessoria.

Entre as companhias e advogados que acompanharam o processo, a publicação provocou um misto de alívio, com o fim da expectativa, e de frustração, porque, após mais de dois anos, o decreto não trouxe uma definição sobre o principal impasse: a indenização às concessionárias pelos investimentos não amortizados. Esse cálculo é essencial, porque será o critério básico para as empresas decidirem se fecham o acordo de relicitação ou continuam o embate judicial com o governo.

"Do ponto de vista procedimental, o decreto tornou possível a devolução. Mas o principal entrave permanece", afirma Letícia Queiroz de Andrade, sócia do Queiroz Maluf Advogados.

O decreto trouxe algumas diretrizes sobre o tema, mas o cálculo ficará a cargo de cada agência reguladora. O problema é que, na visão das empresas, as agências têm sido duras em suas propostas de como mensurar o ressarcimento, o que poderá afastar um acordo para a devolução.

No caso da Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT), que deverá avaliar a maior parte dos pedidos de devolução, a minuta com a proposta de indenização, que está em consulta pública, foi extremamente criticada pelas companhias. Entre os pontos questionados, a agência propõe definir um teto para o ressarcimento, que seria definido com base nos valores do Estudo de Viabilidade Técnica, Econômica e Ambiental (EVTEA), que é apenas um cálculo inicial, anterior à estruturação da concessão.

Outro ponto de dúvida das empresas: a indenização será paga pelo novo concessionário. Mas não há garantias que o novo leilão será bem-sucedido.

Outra incerteza levantada é em relação às multas aplicadas pelo poder concedente nos últimos anos, que, pelo decreto, serão descontadas do ressarcimento. Grande parte dessas multas é alvo de questionamento judicial, e não se sabe como o governo vai endereçar as divergências. Há o temor de que a indenização seja praticamente anulada caso seja feito o desconto da forma como a agência reguladora propõe.

"Posso dizer que o decreto, se por um lado faz esforço de buscar solução para as concessões problemáticas, por outro deixa vários pontos em aberto, o que dá insegurança jurídica", afirmou César Borges, presidente da Associação Brasileira de Concessionárias de Rodovias (ABCR).

A saída proposta pelo governo não trará resultados no curto prazo. Pelos cálculos de Borges, serão necessários pelo menos dois anos até que uma concessão possa migrar amigavelmente para outro grupo controlador.

Além da indenização, outra variável que será determinante para as empresas aceitarem a devolução é o tamanho do risco de caducidade de suas concessões.

Algumas já tiveram a anulação pedida pela agência reguladora - são os casos de Via040 da Invepar, MSVias da CCR e Concebra da Triunfo, que estão protegidas por decisões liminares. Além disso, recentemente, a ANTT abriu um processo para apurar obras não executadas em todos os contratos desde 2008 - o que foi visto por algumas companhias como uma forma de pressionar pela devolução.

Há ainda a situação de Viracopos, um caso à parte porque a concessionária Aeroportos Brasil Viracopos (ABV) está em recuperação judicial desde maio do ano passado. O grupo chegou a pedir a devolução do contrato após a publicação da lei em 2017. No entanto, como o decreto da regulamentação demorou para sair, a concessionária teve que recorrer à proteção judicial para evitar a caducidade. Procurada, a concessionária disse que ainda vai analisar o decreto para decidir se prosseguirá com o processo de relicitação.

No entanto, uma devolução neste caso seria ainda mais complexa, porque, para isso, a ABV terá que abrir mão da recuperação judicial, o que dependerá do aval de seus credores.

O decreto define que um grupo em recuperação judicial pode até dar início ao processo de devolução. No entanto, para assinar o aditivo que formaliza o acordo da relicitação, a concessionária teria que se comprometer a sair de recuperação judicial em um prazo de 60 dias.

Segundo fontes familiarizadas com o processo, o prazo foi considerado muito curto. Além disso, com o avanço de negociações para a aprovação do plano de recuperação, a ABV poderá optar por manter o curso da recuperação judicial. Desde maio do ano passado, a concessionária tenta aprovar junto aos credores a renegociação de suas dívidas bilionárias, ainda sem sucesso.