O Globo, n. 32633, 11/12/2022. Brasil, p. 14

Papai, mamãe, titia

Pâmela Dias


Em uma rede social, o publicitário Cyro Freitas, de 38 anos, escreveu em novembro: "levante-se da mesa quando o amor não estiver mais sendo servido", da música da artista e ativista negra Nina Simone, que aprendeu a tocar blues escondida dos pais.

A reflexão foi como traduziu seus sentimentos um dia depois de ter saído do grupo da família por ser gay. Laços familiares desfeitos no país são um fenômeno cada vez mais estudado desde que se intensificou a polarização com as eleições de 2018. Por trás do que parece política, há muito mais: histórias de profundas divergências sobre temas como homofobia, racismo e papel da mulher na sociedade. Diferenças que extrapolam os limites do lar.

Cyro saiu do grupo e de casa, deixando para trás afetos e vínculos sanguíneos para mergulhar na aventura de viver as suas verdades.

— Quando eu saí de casa, meu pai foi indiferente, mas minha mãe não queria que eu me mudasse. Mesmo eu morando perto, ela me fez adiar ao máximo a mudança — relembra ele, que rompeu de vez o cordão umbilical em 2016, ainda dois anos antes de os ânimos ficarem ainda mais acirrados, de acordo com o termômetro de especialistas.

Cyro, que tinha 31 anos quando se despediu de casa, buscava mais independência e fugia da homofobia. Pesquisadores que se dedicam a casos como o dele avaliam que as rupturas acontecem porque, cada vez mais, almoços e jantares de família servem pratos de intolerância. O avanço do conservadorismo no Brasil está na raiz do problema que não se limita a um debate eleitoral.

Rejeição e medo

Para o antropólogo Bernardo Conde, professor da PUC-RJ, a divisão familiar transpassada pelo preconceito pode gerar problemas psíquicos e sociais à vítima, mesmo quando ela se rebela e rompe o ciclo de ataques, como fez Cyro.

— Às vezes, um filho que se rebela demarca a autonomia, mas também pode existir a ideia de rejeição, que leva à insegurança ou à baixa autoestima. Por não poder se abrir com a família, a pessoa pode vir a ter uma incapacidade de se relacionar plenamente ou pode ainda reproduzir o sistema conservador da família — explica.

Um levantamento realizado pela consultoria Quaest, a pedido do GLOBO, mostrou que, só nos últimos dois anos, mais de 2,5 milhões de publicações na internet indicavam polarização familiar para além de divergências políticas, com destaque para brigas envolvendo LGBTfobia, intolerância religiosa e racismo. Dos posts analisados no Twitter, Instagram, Facebook e Reddit, 17% denunciavam atitudes LGBTfóbicas no núcleo familiar. O pico de publicações foi em outubro, durante as últimas eleições, quando viralizou o tuíte de um homem trans expulso da casa da irmã. Os casos de intolerância religiosa somam 13% e os de racismo, 3%. Os principais termos associados à polarização entre familiares se referiam a "sair de casa", "igreja" e "sair do armário". Em postagens na internet, pode-se encontrar um enorme varejo de temas indigestos, que vão de gordofobia a racismo reverso — refutado por estudiosos, que consistiria em brancos sendo alvo de preconceito por parte de negros.

Números do preconceito

2,5 milhões : Entre 2020 e 2022, os especialistas em métricas identificaram este total de publicações nas redes sociais relacionadas a brigas de famílias.

17% tema LGBT: Uma parte considerável dessas citações se referiam a brigas em torno de questões de orientação sexual e identidade de gênero.

13% religião: Brigas com motivação de intolerância religiosa também se destacam na pesquisa, que foi buscar a raiz das discussões atribuídas a brigas políticas.

3% racismo: O racismo aparece em famílias brancas e negras. Os destaques ficam para brigas em lares interraciais ou sobre temas controversos como racismo reverso.

Uma parte considerável dessas citações se referiam a brigas em torno de questões de orientação sexual e identidade de gênero.

Entre 2020 e 2022, os especialistas em métricas identificaram este total de publicações nas redes sociais relacionadas a brigas de famílias.

Nascido em família de militares, o publicitário conta que nunca se sentiu à vontade para se assumir gay. Desde pequeno ouvindo que era errado ser homossexual, Cyro só oficializou o relacionamento de 11 anos com Hilderlan Fernandes Martins, de 32 anos, em 2020. Hoje, tem o apoio da mãe e dos irmãos. Mas o pai se recusa até mesmo a permanecer no mesmo ambiente com filho e o genro. O preconceito, segundo o publicitário, o afastou d as celebrações em família de que tanto sente falta. Neste Natal, não haverá ceia.

Embora não haja uma causa única para esses comportamentos, Conde vê no cristianismo, principalmente da igreja evangélica, uma das faces desse radicalismo.

— Quando as pessoas fogem do considerado correto pela Bíblia, precisam ser combatidas ou convertidas por medo do "inferno" e do "pecado". A desinformação fomenta o ódio — diz.

O afastamento progressivo da designer Rebeka Guimarães, de 23 anos, da mãe se solidificou nos últimos quatro anos, com a eleição do presidente Jair Bolsonaro (PL). Sentindo-se humilhada por ter amigos LGBTs ou por ser a favor da vacina contra a Covid-19, ela rompeu de vez com a mãe e teve uma semana para achar uma casa nova em Santa Catarina.

— Minha mãe disse para eu arrumar as malas e ir embora. Eu comecei a chorar e decidi que não merecia continuar passando por aquilo. Ela destruiu a nossa família, que ela dizia ser prioridade — desabafa Rebeka, recém-empregada, que ganhou móveis usados de amigos e recebeu ajuda financeira do pai, que mora com a irmã mais velha no Paraná.

O cientista social Milton Lahuerta, coordenador do Laboratório de Política e Governo da Universidade Estadual Paulista (Unesp), afirma que a radicalização conservadora, que também acontece em outros lugares do mundo, ameaça direitos conquistados pelas minorias. Por outro lado, tem provocado o surgimento de outros arranjos sociais:

— Há uma reconfiguração do papel da família, que passa a ter outras raízes fora do pai, da mãe e de irmãos.

Racismo encoberto

Apesar de aparecer de forma menos expressiva na pesquisa, o racismo acabou com a paz familiar do escritor baiano Ricardo (nome fictício), de 28 anos. Ele passou a ser assediado a cortar o cabelo black power porque os pais achavam "feio". Ricardo resolveu se mudar há três meses de Salvador para São Paulo.

— Sou de uma família de não-brancos, mas o racismo sempre esteve presente. O meu black é um problema para o meu pai — conta ele que viu o afastamento como inevitável.