O Globo, n. 32633, 11/12/2022. Mundo, p. 24

Como há 20 anos, Lula admi­nis­tra atri­tos com EUA

André Duchiade


Há 20 anos, no dia 10 de dezembro de 2002, o então presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva entrou no Salão Oval da Casa Branca para uma conversa com o presidente americano, George W. Bush.

— Os Estados Unidos precisam dar uma chance ao Brasil — afirmou Lula. — O futuro de meu país é brilhante. Nós só queremos construir o nosso destino.

O estilo sincero agradou Bush:

— Eu gosto desse cara — disse o líder americano à sua equipe mais tarde. — Realmente gosto desse cara. Não tem enganação; ele é aquilo que aparenta.

Sem nenhum item prático na agenda, a conversa permitiu a Lula demonstrar que um líder da esquerda latino-americana poderia fazer negócios com um presidente conservador dos Estados Unidos. O encontro serviu para acalmar mercados, temerosos de que a economia brasileira fosse implodir, e também para forjar laços pessoais entre os dois presidentes, contrariando preconceitos do Partido Republicano. Isto depois permitiu ao novo presidente brasileiro ter margem de manobra com Washington, em temas como, por exemplo, a invasão ao Iraque.

A situação atual evoca aquela de 2002. Tal como então, Lula agora se aproxima dos EUA logo antes de iniciar um mandato. Na semana passada, em reunião em Brasília com o conselheiro de Segurança Nacional de Joe Biden, Jake Sullivan, ficou acertado que ele deve ir aos EUA logo depois da posse, em janeiro. Uma viagem antes da posse, como há 20 anos, chegou a ser cogitada, mas se mostrou inviável diante da agenda do governo eleito e de uma possível ausência de colaboração do governo Bolsonaro.

Como daquela vez, Lula viajará em busca de respaldo, de boa vontade e de vias de comunicação abertas com o presidente dos Estados Unidos. Como daquela vez, a nova visita pretende firmar vínculos capazes de suportar possíveis estremecimentos:

— Em ambos os casos, trata-se de uma ação preventiva — afirmou ao GLOBO Matias Spektor, professor de Relações Internacionais da FGV-SP e autor de “18 Dias: Quando Lula e FHC se uniram para conquistar o apoio de Bush” (Ediouro, 2014), que narra a preparação daquela viagem e de onde o diálogo que abre este texto foi retirado.

Em 2002, o principal interesse de Lula era econômico. Spektor ressalta que, 20 anos depois, isto mudou:

— Desta vez, as duas principais motivações são fortalecer Lula diante das Forças Armadas brasileiras, que Bolsonaro tentou mobilizar para questionar a legitimidade das eleições, e criar uma relação especial com Biden. Uma identidade comum entre os presidentes será muito útil quando Brasil e EUA começarem a se chocar no que a agenda bilateral tem de contencioso.

As preparações para a viagem há 20 anos começaram no dia seguinte à vitória de Lula contra o tucano José Serra, em 28 de outubro. Ao receber telefonema de parabéns de Bush, Lula disse que “seria ótimo” se os dois pudessem se encontrar “até o fim do ano”. O autoconvite era incomum, pois o líder americano não costumava se encontrar com presidentes eleitos. O livro de Spektor narra os 17 dias até a oficialização da viagem, incluindo também o dia do encontro.

Olhar para duas décadas atrás é recordar como a democracia brasileira já teve civilidade, e como a situação atual, na qual apoiadores de Jair Bolsonaro continuam a clamar por um golpe de Estado na frente de quartéis, é anômala. Fernando Henrique Cardoso, o presidente que deixava o cargo, teve atuação zelosa para facilitar a transferência de poder.

Segundo Spektor, o presidente de saída agia em interesse próprio, pois queria evitar que o real, o seu principal legado, derretesse. Assim, pôs Rubens Barbosa, o embaixador em Washington, para atuar em favor do novo governo. O pesquisador também diz que foi FH quem sugeriu ao sucessor a nomeação de Celso Amorim para o Itamaraty.

Lula e Bush também agiam em interesse próprio. Lula queria evitar “uma corrida contra o real” e que o governo americano demonstrasse acreditar em seu compromisso com a democracia. Já Bush, que tinha relacionamento péssimo com a Europa poucos meses antes de lançar a invasão do Iraque, “não queria que o Brasil fizesse coro na ONU contra a guerra, e achou por bem se aproximar”.

Pontos de atrito existiam entre as partes, e alguns ainda perduram. Washington já se preocupava com a Venezuela, então ainda uma democracia sob o comando de Hugo Chávez. Do lado do PT, muitos desconfiavam de Washington. Dúvidas sobre a economia brasileira, e possíveis descontroles fiscais, permeavam as relações.

Nem tudo foram flores na reunião. Bush espantou-se que Lula usasse um broche do PT na lapela, em vez de um do Brasil. Sobre as depois fracassadas negociações para criar uma Área de Livre Comércio das Américas (Alca), Lula disse: “Estou pronto para negociar com a mesma firmeza de vocês”. Já Bush respondeu: “Espero que com realismo também”.

Apesar das diferenças, a sintonia pessoal entre os presidentes foi tão boa que, segundo Spektor, permitiu a Lula discordar de Bush em momentos mais difíceis posteriores. Para o pesquisador, nos três temas da agenda de maior divergência — Alca, Guerra do Iraque e Rodada de Doha da Organização Mundial do Comércio (OMC) — “Bush e Lula discordaram o tempo todo, mas a relação bilateral não sofreu”.

— A aposta deu certíssimo. Lula jogou para ganhar e ganhou. De todos os presidentes da América Latina, quem teve melhor relação com Bush foi ele — disse Spektor. — Isso permitiu que Lula tivesse cobertura para discordar dos EUA nos três temas mais complicados.

A partir do encontro, Lula passou a ter acesso ao telefone de Bush. Os presidentes voltaram a se encontrar outras vezes, como em 2007, quando o brasileiro foi o primeiro latino recebido pelo republicano na casa de veraneio de Camp David.

Quando voltar a Washington, Lula estará em outra posição. Os itens da agenda bilateral com mais potencial para conflito, segundo Spektor, são medidas ligadas ao clima e ao comércio internacional. Biden tem expectativas em relação a Lula, como, por exemplo, que ele facilite o diálogo que já está ocorrendo com Nicolás Maduro, na Venezuela. A desconfiança desta vez, no entanto, será muito menor:

— Em 2002, havia dúvida na Casa Branca se Lula seria um presidente revolucionário. Agora não existe tal dúvida, o governo Biden sabe que Lula é a opção moderada, e que Bolsonaro é o radical. Para o governo americano, Bolsonaro representou uma ameaça real à democracia no Brasil — afirmou Spektor. — Agora, o desafio não é testar Lula, mas ajudá-lo a começar com força. Lula não precisa mostrar a que veio. Biden quer ajudá-lo a começar bem, para gerar efeitos na política interna, sobretudo na relação com os militares.