O Globo, n. 32633, 11/12/2022. Economia, p. 17

Desigualdade

Cássia Almeida


O aumento da desigualdade empurrou 4,2 milhões de brasileiros para pobreza. Estudo dos pesquisadores Pedro Ferreira de Souza, Rafael Osório e Marcos Hecksher, do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), mostra que 70% do aumento da pobreza entre 2012 e 2021 vieram da piora na distribuição de renda, com os mais pobres perdendo mais recursos que os mais ricos.

Após a queda da desigualdade da década anterior, a distância entre o topo e a base da pirâmide voltou a crescer, o que torna mais difícil erradicar a miséria em 2030, meta assumida pelo Brasil e prioridade anunciada pelo presidente eleito Lula (PT).

A parcela da população com renda per capita de até R$ 292 mensais subiu de 12,8% em 2012 para 15,7%, o maior nível da série histórica. São cerca de 33 milhões na pobreza.

— O país está na contramão do que vinha antes de 2014. Desde a recessão de 2015 e 2016, o aumento da desigualdade tem sido um efeito muito constante. O crescimento até varia, mas, nesse período, a maior parte do aumento da pobreza veio do empobrecimento dos mais pobres. Isso traz preocupação diante do novo normal do mercado de trabalho, muito difícil para os mais vulneráveis — afirma Pedro Ferreira de Souza, um dos autores do estudo.

 ‘Modelo disfuncional’

Desde 2014, quando a economia brasileira entrou em crise, esse ambiente negativo praticamente não passou, observa Souza. E a fraca recuperação do Produto Interno Bruto (PIB), de pouco mais de 1% entre 2017 a 2019, não chegou aos mais pobres. Em 2020, nova recessão veio com a Covid.

— Aquela demanda que havia por trabalhadores no varejo, na construção civil antes de 2014 diminuiu. Esse mercado ficou muito complicado nos últimos anos. Foi uma década totalmente perdida, retrocedemos— afirma Souza.

O aumento da pobreza em 2021 também surpreendeu os pesquisadores. Foi a maior alta em 30 anos, desde anos 1990.

— Essa alta é totalmente explicada pelo auxílio emergencial ter sido bem menor (no ano passado em relação a 2020, no auge da pandemia) e a recuperação econômica bem mais lenta, com mercado de trabalho ruim — pontua.

Havia expectativa de que a pobreza aumentasse quando saísse de cena o auxílio emergencial de R$ 600 pago em 2020, quando ficou “artificialmente baixa”, diz Souza. Mas o impacto foi maior:

— Esperávamos que voltasse a 2019, perto de 13%, mas está quase em 16%.

O sistema tributário injusto contribui para essa situação de desigualdade estrutural. A prioridade que o governo eleito diz querer dar à reforma tributária terá mais efeitos do que simplificar a cobrança de tributos e aumentar a produtividade, sugere o estudo.

Diante das distorções do sistema atual, que penaliza proporcionalmente os mais pobres, a reforma mitigaria a distância de renda entre ricos e pobres, dizem os especialistas.

A reforma dos impostos indiretos, aqueles que incidem sobre o consumo de produtos e serviços, mais desenhada para reduzir a ineficiência da economia e aumentar a produtividade, reduz de 27% para 25% a alíquota média dos 10% mais pobres e sobe de 10% para 11% a dos 10% mais ricos.

Teria maior impacto na melhoria da distribuição de renda se igualasse a tributação dos rendimentos do trabalho com a do capital. Atualmente, lucros e dividendos recebidos por pessoas físicas, por exemplo, são isentos, o que favorece à parcela da população mais rica.

—Temos um modelo muito disfuncional. Tributamos o lucro com alíquotas altas para as empresas, de 34%, a mais alta do mundo. Temos que tributar mais a renda do capital no nível da pessoa física, como a maior parte do mundo faz. Implantar um modelo que reduza os hiatos entre a renda do capital e a do trabelho — afirma Rodrigo Orair, especialista em tributação, pesquisador do Ipea e ex-diretor da Instituição Fiscal Independente (IFI).

Débora Freire, professora da UFMG, também estudiosa do sistema tributário brasileiro, calcula que só a harmonização das alíquotas sobre produtos e serviços —que variam de 5% a 40% —reduziria em 2% a desigualdade. Ela defende que os impostos sobre consumo sejam parcialmente devolvidos aos mais pobres, o que faria a desigualdade cair 3,2%.

— Para pensar a redução da desigualdade tem que combinar a diminuição da regressividade (quando intensifica a concentração de renda) do sistema indireto e tornar a tributação da renda efetivamente progressiva. No topo da distribuição, isso não acontece.

Reajuste para programas

Marcos Hecksher, outro autor do estudo sobre pobreza, diz que programas de transferência de renda como o Bolsa Família devem ter reajustes garantidos. Evitaria que, em períodos de crise, como em 2015 e 2016, o benefício para os mais pobres ficasse congelado.

— Não tem como tornar o Brasil mais igualitário só com transferências de renda, mas o programa ajuda e ajudaria mais ainda se tivesse correção. Caso contrário, a renda dos mais pobres fica para trás. Isso aconteceu em várias ocasiões.

Ele defende que o benefício seja reajustado anualmente pelo PIB per capita, incluída a inflação, mais 0,2%. Essa fórmula permitiria aproximar os ganhos das famílias de baixa renda da média, sem comprometer as contas públicas.

— O Bolsa Família foi ficando para trás de 2014 para 2021. Os pobres pagaram mais pelo ajuste fiscal.

Saúde e educação são decisivos para alterar o quadro

Os serviços universais de saúde e educação públicos têm papel fundamental para reduzir a desigualdade de renda no país, uma das maiores do mundo.

O economista Fernando Gaiger, pesquisador do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), calculou o peso desses serviços para tornar a distribuição de renda mais igualitária. O Índice de Gini — indicador que quanto mais perto de 1, mais desigual é a sociedade — chega a cair entre 14% e 19%.

Segundo Gaiger, os 25% mais ricos são a maior parte dos que usam serviços privados tanto de saúde como de educação,por isso o gasto em saúde pública é mais focalizado e tem maior efeito sobre a desigualdade:

— O gasto universal é muito progressivo (diminui a desigualdade). Tem que olhar as experiências internacionais. A saúde e educação públicas são a marca do desenvolvimento dos países centrais.

Na educação, por atender crianças e jovens, onde se concentra a fatia mais pobre da população,o gasto também também termina focalizado em quem mais precisa.

Na contramão

O pesquisador diz que os serviços privados de saúde no Brasil hoje respondem por 55% da oferta. Uma parcela mais alta que a dos EUA, país marcado pela saúde privada:

— Nós só perdemos para a Índia. Estamos completamente fora da curva.

O economista da Organização Internacional do Trabalho (OIT) Sergei Soares também já tinha calculado o peso da educação pública no bem-estar das famílias:

— Quando fiz as contas de educação, (em 2017) a única coisa que não era igualizante era a educação superior, que já deve ter ficado com as cotas sociais e raciais. É bem significativo o aumento de renda das famílias com acesso à educação, pouco maior que o do gasto público com o serviço. Há uma redução de desigualdade bastante razoável.

Para Ligia Bahia, professora da UFRJ especializada em economia da saúde, o Brasil faz caminho oposto ao que outros países vêm fazendo na saúde, ao aumentar o gasto privado:

— É vetor de desigualdade comprovado. A tendência mundial é de aumento de gastos públicos, o Brasil está na contramão. Espera-se um duplo movimento: aumentar a despesa pública e reduzir gasto privado.

Ela lembra que famílias gastam muito com medicamentos, lentes de óculos, e que é preciso aumentar o cardápio da Farmácia Popular para tirar dos mais pobres esse ônus, que consome parcela maior da renda deles que da dos ricos.

Gaiger diz que os elementos fundamentais para tornar o país mais igualitário são elevar a tributação da renda e do patrimônio e oferta majoritária de saúde e educação públicas:

— Esses elementos estão ausentes hoje.