Valor Econômico, v. 20, n. 4882, 19/11/2019. Opinião, p. A11

Dados pessoais precisam de proteção

Rana Foroohar

Os dados passaram muito claramente a impulsionar nossa economia. É por esse motivo que o negócio de colher, analisar e proteger dados vem ganhando vida própria mais além da esfera das ferramentas de busca, do comércio eletrônico e das redes de relacionamento social on-line, e dentro de todas as outras áreas da economia - saúde, finanças, seguros, educação, etc.

Uma investigação do “Financial Times” na semana passada revelou que vários sites britânicos de assistência médica, como o WebMD e o Healthline, estão compartilhando dados delicados dos usuários tanto com grandes plataformas tecnológicas, incluindo Google, Amazon,

Facebook e Oracle, quanto com várias empresas menores. Nos Estados Unidos, foi revelado que o Google promoveu sua própria investida na coleta e análise de dados de saúde, o “Projeto Nightingale” (rouxinol), em conjunto com o segundo maior grupo hospitalar do país. O Google reuniu dados de dezenas de milhões de pacientes, sem que nem eles nem os médicos deles soubessem.

A mineração e monetização de dados há muito é o cerne do modelo de negócios das empresas de plataformas de tecnologia; esse é motivo pelo qual, segundo o McKinsey Global Institute, cerca de 80% da riqueza empresarial mundial hoje está em apenas 10% das empresas, muitas delas com sede no Vale do Silício. Cada vez mais, no entanto, esse chamado “capitalismo de vigilância” é o modelo de negócios de todas as firmas, de todos os setores.

O Google tem interesse em entrar nas áreas de saúde e finanças, em parte, porque seus concorrentes já estão lá. As “Big Tech”, porém, levam vantagem também nesses setores em comparação com as empresas tradicionais. As firmas de tecnologia não estão necessariamente sujeitas às exigências da Lei de Responsabilização e de Portabilidade dos Seguros de Saúde (HIPPA, na sigla em inglês), que determina os padrões de privacidade para as firmas de assistência médica e seguradoras de saúde, nem às penas previstas por infringir essas regras.

É alguma surpresa, então, que as prestadoras tradicionais de assistência médica estejam tentando elas próprias encontrar brechas na HIPAA? A Optum, empresa de dados pertencente ao UnitedHealth Group, entrou com solicitação de patente para um software de “raspagem” de dados para extrair informações sobre saúde que estejam no Facebook e Twitter. Outros vêm tentando driblar as regras tornando os dados “anônimos”, embora existam pesquisas mostrando que algoritmos podem decodificar tais dados e voltar a associá-los aos usuários individualmente.

A conclusão é que o atual sistema de regulamentação não faz nenhum sentido na era do capitalismo de vigilância. Empresas tradicionais precisam obedecer a regras que as novas podem evitar. Há, portanto, espaço para que se faça arbitragem com as regras, não apenas na saúde, mas também nas finanças, já que, de forma similar, as firmas de tecnologia de serviços financeiros não estão sujeitas às mesmas regras que os bancos.

Será que deveríamos permitir que todas as empresas recolham e monetizem dados em áreas delicadas como saúde, informações financeiras, emprego? É algo que vale a pena se perguntar, tendo em vista o poder monopolista, as violações de privacidade e as ameaças a nosso sistema político.

Caso, de fato, continuemos permitindo isso, precisamos dar condições iguais a todos. De que forma vão surgir inovações quando startups não tiverem a mínima chance de concorrer contra uma grande plataforma de tecnologia ou uma grande empresa de saúde ou corretora de dados que já tenha arrebatado a maioria das informações dos usuários em qualquer área e assegurado a propriedade dessas informações?

Há uma maneira refinada de lidar com o problema - uma base de dados pública, que seria regulamentada por governos eleitos democraticamente. Eles deveriam decidir quem tem permissão de acesso aos dados digitais dos cidadãos e para que fins esses dados podem ser recolhidos. As pessoas deveriam saber o que as empresas fazem com os dados, e transferi-los como e quando quiserem. Todas as leis e direitos civis existentes deveriam aplicar-se automaticamente para tais informações.

Essa base de dados pública poderia ser acessada por empresas do setor privado, devidamente regulamentadas, de todos os tamanhos. Essa é uma ideia sendo considerada em partes da Europa e no Canadá, onde o governo de Toronto decidiu que os dados reunidos pelo Google no projeto de “cidade inteligente”, de sua unidade Sidewalk, devem ser armazenados em uma base de dados pública.

É de se imaginar que uma base de dados pública tenha um valor enorme (como já ocorre na China, embora sem o debate apropriado sobre como é usada). À medida que as sociedades se dirigem a ter uma identidade digital e, provavelmente, uma moeda digital (esperemos que regulamentada por governos democráticos e não pelo Facebook ou pelo Partido Comunista chinês), a supervisão pública e a transparência poderiam trazer ganhos imensos de produtividade, inovações e uma crescente confiança do público. Os cidadãos poderiam votar sobre como seus dados são aproveitados: eles poderiam, por exemplo, permitir o uso em pesquisas médicas, mas proibi-lo em áreas puramente voltadas ao consumidor.

A questão é que atualmente temos um sistema que não apenas traz o risco de fraude e parcialidade, mas também é injusto enquanto mercado. Não é uma situação sustentável tanto para as empresas quanto para a democracia liberal. Não é de surpreender que a primeira-ministra da Alemanha, Angela Merkel, tenha instado a Europa a criar seu próprio ecossistema digital. Ela está correta em achar que é hora de começarmos a assegurar nossa soberania digital, não apenas por motivos políticos, mas também por econômicos. (Tradução de Sabino Ahumada).

Rana Foroohar é colunista de negócios nos Estados Unidos e editora especial do Financial Times