O Globo, n. 32625, 03/12/2022. Economia, p. 13

Crianças na pobreza

Carolina Nalin
Glauce Cavalcanti
Letícia Messias


A parcela de crianças menores de 14 anos que estão na pobreza chegou a 46,2% no Brasil no ano passado, o maior percentual da série, iniciada em 2012. São 20,3 milhões de meninos e meninas que vivem sem rendimento suficiente para ter condições mínimas de bem-estar, segundo a Síntese de Indicadores Sociais do IBGE, divulgada ontem. A proporção é muito maior do que na população em geral, na qual 29,4% estão na mesma situação, ou 62,5 milhões de brasileiros — também o maior o contingente na pobreza da série histórica. Os critérios considerados para linha de pobreza são os do Banco Mundial: renda per capita menor que US$ 5,50 por dia ou R$ 486 por mês. “A redução dos valores e abrangência e o aumento dos critérios para concessão do auxílio emergencial, em 2021, provavelmente tiveram impactos sobre o aumento da extrema pobreza e da pobreza neste”, diz a pesquisado IBGE. Daniel Duque, pesquisador da Fundação Getulio Vargas (FGV), explica que 2021 concentrou queda acentuada dos rendimentos do trabalho por causa da inflação alta e da pandemia, especialmente no primeiro trimestre. E o auxílio emergencial, concedido às famílias no auge da pandemia em 2020, sofreu uma série de oscilações no ano seguinte:

— O auxílio foi suspenso no primeiro trimestre de 2021 e depois recuperado no segundo e terceiro trimestres com um valor menor. Foi finalizado no quarto trimestre e substituído pelo Auxílio Brasil, com um valor ainda menor. Justamente nas famílias mais vulneráveis e que dependem de transferências do governo reside a maior parte das crianças brasileiras— uma vez que a taxa de natalidade tem sido baixa nas classes de renda mais altas, afirma Duque. Hoje, o Auxílio Brasil é de R$ 600 por família, independentemente do número de integrantes. O alento é o adicional de R$ 150 por criança até 6 anos previsto no programa do próximo governo:

— O programa seria ainda melhor se voltasse aos moldes do Bolsa Família, sem um benefício básico por família tão alto, considerando o número de membros das famílias. Mas a proposta é positiva.

O país tem ainda 17,8 milhões de brasileiros na extrema pobreza, com ganho per capita inferior a US$ 1,90 diário, ou R$ 168 mensais, contingente também recorde. São 8,4% da população nesta situação. De novo, as crianças são as mais afetadas: 13,4% delas são extremamente pobres. Na ocupação Vila Canaã, em São Cristóvão, na Zona Norte do Rio, Daniele Rodrigues, de 39 anos, vive com os cinco filhos em um cômodo pequeno e dividido apenas por um guarda-roupas, que separa o espaço onde está a cama de casal, em que todos dormem, e a sala. Em 2020, no auge da pandemia, ela sofreu um AVC e ficou com o lado esquerdo do corpo paralisado. Teve de parar de trabalhar. Agora, depende do Auxílio Brasil, de R$ 600. — Tenho cinco filhos. Eles têm 3, 7, 9, 12 e 19 anos. Já faz cinco anos que agente mora nessa ocupação. Antes, morávamos em outra, mas fomos despejados—diz Daniele.—Hoje, com R$ 600, você compra arroz, feijão ou uma mistura. Irmã mais velha de Daniele, Silvana Rodrigues, de 45 anos, também mora na Vila Canaã. Ela vive com quatro dos dez filhos e o marido, que perdeu a visão de um olho e parou de trabalhar. Para complementar a renda, Silvana vende doces: —Tem dia que vende, em outros não. As doações também sumiram. As crianças não entendem. Costumam pedir danone, biscoito, sucrilhos. Coisas que eles tinham antes da pandemia por causa das doações. Mas hoje faltam leite, pão.

Política social ineficiente

Os números da pobreza no país refletem a política de transferência de renda dos últimos dois anos, afirmam especialistas. Em 2020, no início da pandemia, o auxílio emergencial de R$ 600 colaborou para tirar 23 milhões de pessoas da pobreza. A interrupção do programa, porém, elevou a pobreza a 25 milhões de pessoas em seis meses, lembra Marcelo Neri, diretor da FGV Social:

— Esse salto parece um trailer de janeiro de 2023, quando termina a próxima edição. No período agudo da pandemia, setembro de 2020, a pobreza atingiu o mínimo histórico. Sem o auxílio, subiu ao ponto mais alto da série desde 2012 em apenas seis meses. As oscilações da pobreza estão relacionadas a essas escolhas. Olhando para frente, diz Neri, é preciso rever o desenho do novo Bolsa Família:

— Não vejo nada de errado em ter 1,5% do PIB para política de combate à pobreza, como vem sendo discutido. Mas é preciso cuidar do desenho do programa. O Auxílio Brasil gasta três vezes mais que o antigo Bolsa Família, mas desperdiça 55% dos recursos. Para Ricardo Henriques, superintendente executivo do Instituto Unibanco e professor da Fundação Dom Cabral, há dois problemas relevantes: — Além da política de transferência de renda deste governo ser errática, é punitiva aos mais vulneráveis, por tirar a previsibilidade que havia no Bolsa Família. O Auxílio Brasil veio com o desmonte da política social integrada, que deve ser multidimensional.

Ele chama atenção para o que classifica de “desmonte” do Cadastro Único:

— O governo descontinuou um ciclo de evolução contínua na emancipação de pessoas da pobreza — diz o economista, que é colunista do GLOBO.