O Globo, n. 32661, 08/01/2023. Mundo, p. 21

França conta com Brasil no 'grande palco' global

Fernando Eichenberg


Os quatro anos do governo de Jair Bolsonaro se destacaram por uma explícita animosidade política e diplomática com a França, histórico parceiro do Brasil. A cartilha isolacionista e anti ambientalista do período bolsonarista, acrescida de agressões verbais do presidente brasileiro e de ministros de seu governo, levou a um retrocesso nas relações entre Brasília e Paris. Com o retorno de Luiz Inácio Lula da Silva ao Palácio do Planalto, os dois países começaram a articular, mesmo antes da posse, uma reaproximação e o restabelecimento da relação bilateral em novas bases.

A França conta com a volta do Brasil ao “grande palco das relações internacionais” —como anunciado pelo novo chanceler, Mauro Vieira —para contribuir na resolução de conflitos regionais e como um aliado em bandeiras comuns, como a luta contra o aquecimento global, a preservação da Amazônia e a defesa do multilateralismo. No Palácio do Eliseu, estuda-se uma data para uma visita do presidente Emmanuel Macron a Brasília. No Ministério da Europa e das Relações Exteriores francês, o Quai d’Orsay, está em finalização o roteiro de novo plano de ação para a relação franco-brasileira, a ser anunciado em breve. A ministra da pasta, Catherine Colonna, logo fará uma visita oficial ao Brasil.

— De uma certa forma, a eleição de Lula, que é um grande amigo da França, foi libertadora—diz uma fonte diplomática no Eliseu.

— O Brasil está na encruzilhada de várias questões mundiais, com o futuro presidente do G20, como país de imensos recursos naturais, produtor de alimentos, e com capacidade de diálogo com nações africanas e com Rússia e China. A palavra-chave é “encruzilhada ”: o Brasil está no centro da solução para diferentes problemas globais.

Mensagem para a Rússia

Os franceses esperam o Brasil devolta à“diplomacia do multilateralismo eficaz” e à mesa de discussões sobre as crises na Venezuela, no Haiti e a guerra na Ucrânia. Embora o governo Lula mantenha a posição bolsonarista de não aderir às sanções aplicadas contra a Rússia pela União Europeia e os EUA, Paris acredita em seu papel para pleitear a abertura de negociações de paz.

— Precisamos globalmente do Brasil na crise ucraniana — diz a fonte diplomática. — Nosso objetivo não é necessariamente pedir ao país que adote sanções, mas que tenha uma posição firme contra a agressão russa, os ataques aos civis, e uma forte reação de apoio à população ucraniana. Como membro do Brics e grande potência emergente, o Brasil tem um peso, e pode enviar a Moscou uma mensagem dizendo que é preciso parar o mais rápido com essa guerra. A defesa da Amazônia, alvo de discórdia entre Bolsonaro e Macron, é outro tema caro à agenda francesa. Nesse sentido, Paris aponta um “mal-entendido”, evocado à direita e à esquerda no Brasil, sobre um eventual desejo francês de internacionalizar juridicamente a Amazônia:

— Há uma incompreensão e uma deformação em relação a esta questão — diz a mesma fonte. — Não queremos criar um território sob mandato internacional. (...) Nosso objetivo é apoiar um Estado forte, soberano, em condições de garantir sua própria integridade territorial e capaz de lutar contra a criminalidade e o desmatamento ilegal, agindo em estreita coordenação com a comunidade internacional. No Ministério das Relações Exteriores francês, há consciência de que este era um “ponto sensível” para Bolsonaro, como é, hoje, para Lula:

— Respeitamos a soberania brasileira sobre a Amazônia — diz uma fonte diplomática do Quai d’Orsay.

— Mas acreditamos que o presidente Lula deseja trabalhar conosco. Ele já anunciou uma iniciativa para proteger as florestas tropicais [na COP27, no Egito]. O presidente Gustavo Petro, da Colômbia, disse que promoverá uma cúpula amazônica em 2023, para a qual convidou a França. Há toda uma dinâmica que é relançada.

Do gelo à liberação

Há também a expectativa de reabertura das negociações do acordo Mercosul-União Europeia, hoje bloqueadas. A França não aceita o texto atual, porque considera que não dá garantias de que serão levados em conta os objetivos ambientais do Acordo de Paris e o combate ao desmate ilegal. A Comissão Europeia está trabalhando num adendo ao acordo, e o governo francês espera um aposição sobre ele tanto do governo Lula quanto do Mercosul em conjunto. O sentimento de “liberação” do governo francês com a troca de governo em Brasílias e justifica pela péssima relação nos anos Bolsonaro e as marcas deixadas por várias fricções, algumas caracterizadas por ataques pessoais.

— Os últimos quatro anos bloquearam literalmente nossa capacidade de criar soluções em conjunto com o Brasil — diz a fonte do Eliseu.

— O governo brasileiro não desejava contatos políticos e nos fez saber disso. (...) Anotamos essa posição do governo Bolsonaro, e isso não nos impediu de trabalhar com outros países da América Latina.

Os contatos de alto nível cessaram. A Comissão Mista de Cooperação Transfronteiriça Brasil-França, que se reúne anualmente, teve seu último encontro em julho de 2019, em Macapá. A celebração do 7 de Setembro na embaixada brasileira em Paris ilustrou o clima polar entre os dois países, sema presença de ninguém do primeiro escalão francês, como era costume.

A cooperação franco-brasileira nos setores educacional, universitário, econômico, bem como a parceria estratégica nora moda defesa, principalmente por meio do programa Pro sub, de construção de submarinos, prosseguiram seu caminho. Mas as relações políticas estavam em seu “nível mais baixo”, admite a fonte do Quai d’Orsay.

Trunfo triplo

Para Gaspard Estrada, especialista em América Latina no Instituto de Estudos Políticos de Paris (Sciences-Po), a proximidade hoje das agendas externas de Brasil e França favorece a retomada bilateral.

— A questão da defesa também é importante — ressalta ele. —Há um interesse argentino na compra de submarinos franceses, que poderiam ser construídos na base de Itajaí, no Brasil. No meio ambiente, a parceria de Lula e Macron será muito boa. E há uma vontade das duas partes de concluir o acordo MercosulUE, ainda que Macron tenha dificuldades em aprová-lo junto a sua base agrícola. Mas um acordo desse porte é estratégico para ambas as regiões, para reduzira dependência da China.

Octavio de Barros, vice-presidente da Câmara de Comércio França-Brasil, acredita que surge a chance de recuperar o tempo perdido. — Perdemos muitas oportunidades, e a maior foi a interrupção do acordo Mercosul-UE. Não embarco na história de que os europeus protecionistas viram uma chance de interromper a negociação, que estava prosperando em boa direção. Houve um grande retrocesso no governo Bolsonaro por conta da questão ambiental. Isso teve sequelas na imagem do Brasil no exterior, e o processo de investimento acaba sendo afetado.

O Brasil detém, na sua opinão, o triplo trunfo destacado pelo economista Jorge Arbache, vice-presidente no Banco de Desenvolvimento da América Latina: energia limpa, sustentável e não sujeita a tensões geopolíticas.

— A França sacou a oportunidade histórica que tem com este novo governo. E isso terá uma sinalização muito positiva para o conjunto da UE.

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