Título: Educação superior sem privilégios
Autor: Dalmo de Abreu Dallari
Fonte: Jornal do Brasil, 24/09/2005, Outras Opiniões, p. A11

A educação é essencial para o desenvolvimento da pessoa humana e dos povos. O reconhecimento dessa importância fundamental está refletido no Pacto dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, a que o Brasil aderiu, assumindo compromisso internacional de natureza jurídica. É importante assinalar que educação, nesse documento, não se limita ao nível básico mas inclui também o nível superior, dispondo expressamente o Pacto, no artigo 13: ''a educação de nível superior deverá igualmente tornar-se acessível a todos, com base na capacidade de cada um, por todos os meios apropriados e, principalmente, pela implementação progressiva do ensino gratuito''. A Constituição brasileira proclama que a educação é ''direito de todos e dever do Estado'', mas nas últimas décadas a política educacional adotada pelo governo federal caminhou no sentido oposto ao da gratuidade do ensino superior. Quem vive a realidade sabe que ocorreu efetivamente o que vem sendo chamado de sucateamento das universidades públicas. No atual governo, através do Ministério da Educação, foi iniciado um trabalho no sentido de recuperação do ensino superior. Essas diretrizes estão agora entre as prioridades do governo, graças ao empenho do ministro Fernando Haddad. Foi ele o criador do Programa Universidade para Todos (Prouni) , que teve sua implantação iniciada com a edição da Medida Provisória n° 213, de 2004, que deu origem à Lei n° 11.096, de 13 de janeiro de 2005. O Prouni visa dar efetividade ao princípio constitucional da igualdade de direitos, tendo em conta que apenas 9% dos jovens brasileiros entre 18 e 24 anos de idade estão matriculados em instituição de ensino superior. O Prouni consiste num conjunto de medidas que associam o setor público e o privado, concedendo a este benefícios fiscais, desde que ofereça uma contrapartida de interesse social, consistente no oferecimento de bolsas de estudo integrais ou parciais, como foi especificado na lei n° 11.096.

Um dado altamente expressivo é que o Prouni, após um ano de implantação e sem aumentar os gastos do Estado em educação, gerou 112 mil vagas gratuitas, quando o total de vagas oferecidas pelas universidades federais é da ordem de 120 mil. Apesar desse resultado positivo, há uma resistência ao Prouni, de parte de instituições privadas, autodenominadas ''filantrópicas'', que, contrariando os princípios republicanos fundamentais da Constituição brasileira, pretendem explorar comercialmente o ensino superior, obtendo vantagens econômicas e gozando de imunidade tributária. Em defesa de sua pretensão alegam que a lei n° 11.096, especialmente por seu artigo 10, é inconstitucional, porque estabeleceu condições para que as entidades que exploram o ensino pago recebam benefícios tributários, quando a Constituição estabelece, no artigo 150, que é vedado instituir tributos sobre o patrimônio, rendas e serviços das instituições de educação e de assistência social sem fins lucrativos. Em primeiro lugar, é muito importante lembrar que esse mesmo artigo da Constituição não se limita a prever o benefício fiscal, mas dispõe, expressamente e com absoluta clareza, ''atendidos os requisitos da lei''. No mesmo sentido, o artigo 195, em seu parágrafo 7°, estabelece que são isentas de contribuição para a seguridade social as entidades beneficentes de assistência social ''que atendam às exigências estabelecidas em lei''. O ganho econômico é uma forma de lucro e dar a um setor da atividade econômica o privilégio de não sofrer qualquer tributação significaria revogar a República, restabelecendo o feudalismo ou os privilégios da nobreza extintos pela Revolução Francesa.

Tentando apegar-se, com absoluta impropriedade, a um requisito formal, alegam que haveria necessidade de lei complementar para disciplinar a matéria, o que não tem a mínima consistência, pois é entendimento pacífico entre os constitucionalistas que só cabe lei complementar, que é uma lei ordinária aprovada no Legislativo por um quorum maior, quando a Constituição expressamente o exigir, o que não ocorre nesse caso. A razão da resistência é a perda de um privilégio, pois a inexistência de lei regulamentadora tornava quase impossível o controle da verdadeira beneficência e facilitava as fraudes, havendo entidades privadas que exploravam comercialmente o ramo da educação sem pagar tributos e contribuições gerais e sem oferecer uma contrapartida social relevante que justificasse um tratamento mais favorável.