O Globo, n. 32656, 03/01/2023. Saúde, p. 21

Nova ministra

Karolini Bandeira
Giulia Vidale


A pesquisadora Nísia Trindade se tornou, oficialmente, a primeira mulher a chefiar o Ministério da Saúde. Presidente da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) por cinco anos, Nísia chega ao novo cargo com promessas de fortalecimento do Sistema Único de Saúde (SUS), atenção à vacinação e diálogo com a comunidade científica.

A cerimônia de posse, realizada ontem, teve a presença de oito ministros do novo governo. Entre os presentes, estavam Wellington Dias, do Desenvolvimento Social, e Alexandre Padilha, das Relações Institucionais. Do governo de Jair Bolsonaro, participou do evento o ex-ministro da Saúde, Nelson Teich.

Nísia iniciou o discurso dizendo estar bastante emocionada, com agradecimentos ao presidente Luiz Inácio Lula da Silva e ao vice-presidente, Geraldo Alckmin. Logo ao início da fala, a nova ministra afirmou que a nova gestão será pautada pela ciência.

Como a principal prioridade, Nísia colocou a retomada da coordenação do SUS, citando o fortalecimento com recursos necessários, ações estruturantes e recuperação do ministério na coordenação do sistema. Segundo ela, a aprovação da PEC da Transição foi crucial para garantir o financiamento das ações prioritárias elencadas no relatório final do grupo de transição.

Para os próximos dias, também foi garantida a revogação de portarias e notas técnicas que “ofendem a ciência, os direitos humanos e os direitos sexuais reprodutivos”. Questionada, a ministra não especificou as normativas, mas deu como exemplo a nota técnica que autoriza a prescrição da cloroquina no tratamento da Covid-19.

Ainda nesta semana será instituído um grupo de trabalho, que ficará responsável por revogar, alterar e manter atos da antiga gestão. O trabalho tripartite foi reforçado por diversas vezes por Nísia, ressaltando a importância do diálogo com entidades como o Conselho Nacional de Secretários de Saúde (Conass) e Conselho Nacional de Secretarias Municipais de Saúde (Conasems).

Questões raciais e de saúde mental também estão em pauta, e a nova ministra foi aplaudida fortemente pelo auditório ao firmar compromisso com o combate ao racismo estrutural e a luta antimanicomial. Ela prometeu que a pasta voltará a conversar com a agenda psiquiátrica brasileira.

Confira abaixo os principais temas abordados por Nísia Trindade em seu discurso e que serão trabalhados na nova gestão.

Fortalecimento do SUS

Em seu discurso, Nísia reforçou as dificuldades que o sistema de saúde enfrenta:

— O SUS nunca alcançou um necessário patamar de financiamento — afirmou.

— Precisamos ter consciência que faltam recursos para o SUS cumprir o seu papel. Fortalecê-lo com recursos necessários, ações estruturantes, integralidade e cooperação inter-federativa com a recuperação do papel do ministério na coordenação do sistema e da política nacional da área será a grande prioridade da nossa gestão.

Saúde mental

Antes da pandemia, o Brasil já liderava o ranking global de casos de ansiedade e também ganhava na incidência de depressão entre os países da América Latina. Em 2021, segundo dados da Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP), houve aumento de até 25% nas doenças psiquiátricas. Por outro lado, o governo foi marcado por instabilidade das políticas de saúde mental e de sucessivos cortes de recursos da Rede de Atenção Psicossocial (Raps).

Segundo Nísia, o objetivo da pasta é priorizar a área. Será criado o departamento de saúde mental e enfrentamento do uso abusivo de álcool e outras drogas. Além disso, as medidas serão alinhadas com a reforma psiquiátrica brasileira e a luta antimanicomial, “garantindo políticas de cuidado integral e humanizado no Sistema Único de Saúde”.

Vacinação

Apesar do investimento na compra de vacinas contra a Covid-19, o governo do expresidente Jair Bolsonaro foi marcado por fake news e contestações sobre a eficácia e segurança da vacinação. Além do enfraquecimento do Programa Nacional de Imunizações (PNI), o que ameaça o retorno de doenças controladas e erradicadas, como a pólio. A última vez que o Brasil atingiu uma cobertura vacinal geral de 95% foi em 2015. De lá para cá, os índices ficaram muito abaixo do recomendado para garantir a proteção para a população.

Trindade afirmou que uma das prioridades de sua gestão será a vacinação. Para isso, será criado o Departamento de Imunização, visando fortalecer as ações do PNI.

— Quero destacar, entre várias iniciativas, a importância da retomada das altas coberturas vacinais e do fortalecimento do nosso Programa Nacional de Imunizações. [...] Vacina não é um tema só da saúde. Hoje, é uma grande urgência nacional e não pensamos só na Covid — disse a nova ministra.

Cuidado com indígenas

A região amazônica, onde está localizada a maioria dos povos indígenas do Brasil sofreu de forma devastadora os efeitos da pandemia. A saúde indígena durante a pandemia foi alvo da CPI da Covid-19 no Senado. Embora Bolsonaro não tenha sido indiciado pelo crime de genocídio por ações ligadas à saúde de indígenas, o relatório final do senador Renan Calheiros disse que “não é segredo” que o governo deliberadamente agiu contra os direitos indígenas.

Além disso, em poucos meses, mais de uma dezena de crianças indígenas com menos de cinco anos morreram em duas aldeias do interior do Acre. A causa dessas mortes deveria ser algo impensável em 2022: diarreia.

Por isso, a saúde indígena deve estar entre as prioridades da atual gestão do Ministério da Saúde. Ricardo Weibe Tapeba, indígena militante de movimento social e professor, assume a Secretaria Especial de Saúde Indígena (SESAI).

— No campo da saúde indígena, iniciaremos a gestão de uma maneira muito preocupante .[...] Vivemos hoje uma forte emergência na região Yanomami. [...] Teremos coma visão da Força Nacional de Saúde e de outros elementos importantíssimos, uma ação imediata junto a essa população —afirmou a ministra.

Digitalização

A transformação digital na saúde é um caminho sem volta, em diversas áreas, incluindo a saúde. A pandemia de Covid-19 impulsionou a área, com a rápida implementação de diversos serviços, incluindo a telessaúde.

— A transformação digital é uma realidade já em curso e será fundamental ter diretrizes estabelecidas para uma estratégia de saúde digital no Brasil. Isso será um componente importante pensando a saúde digital e a inteligência artificial aplicadas à saúde, representando um imenso potencial benéfico para a sociedade — disse durante a posse.

Por isso, foi criada a secretaria de Saúde Digital, uma novidade da nova gestão do ministério. Até então, a Saúde Digital era um departamento, que ganhou protagonismo devido ao crescimento de projetos e ações que exigem Tecnologias de Comunicação e Informação (TIC). A secretária será Ana Estela Haddad, mulher do ministro Fernando Haddad, que já atua como coordenadora do Núcleo de Telessaúde e Teleodontologia da Faculdade de Odontologia da USP e como membro do Comitê Assessor da Rede Universitária de Telemedicina e diretora Científica da Associação Brasileira de Telemedicina e Telessaúde.

Foco na ciência

Uma das maiores críticas ao Ministério da Saúde durante o governo anterior foi a ausência de políticas e decisões pautadas na ciência.

Trindade, que é pesquisadora, afirmou que sua gestão será pautada pela ciência e pelo diálogo com as comunidades cientificas.

— Temos o papel de reforçar a comunicação pública da ciência e a valorização da ciência como parte da nossa cidadania —disse.

Investimento econômico e industrial da saúde

A pandemia escancarou a dependência do Brasil na importação de insumos e equipamentos de saúde. Faltaram testes, máscaras, luvas, respiradores, medicamentos e ferramentas básicas para os profissionais de saúde. Nísia Trindade sublinhou a necessidade de atuar para fortalecer a produção local e o complexo econômico-industrial da saúde no Brasil.

— Vamos colocar como um parâmetro desafiador a ser buscado no complexo econômico-industrial da saúde, preparar o Brasil para produzir um patamar de 70% das nossas necessidades de insumos e produtos em saúde — planejou a nova ministra.

Outras ações prioritárias citadas ontem incluem o fortalecimento da resposta à Covid-19; a redução de filas para consultas, exames e procedimentos; investimento na atenção básica; fortalecimento do programa de saúde da mulher, criança e adolescente; e resgate do programa Farmácia Popular e a assistência farmacêutica no SUS.