O Globo, n. 32656, 03/01/2023. Mundo, p. 19

“Com Lula, tudo será mais fácil''

Entrevista: Alberto Fernández


Pouco antes de sua primeira reunião bilateral, ontem, com o novo presidente do Brasil, a quem considera um amigo, o chefe de Estado da Argentina, Alberto Fernández, disse, em entrevista exclusiva ao GLOBO, que “o mais importante que temos é que acreditamos na unidade latino-americana e na ideia de voltar a fortalecer a região como um polo econômico e de desenvolvimento”. Fernández se emocionou ao falar sobre a posse de Lula e enumerou uma série de temas que ambos deverão discutir a partir de agora, entre eles a situação na Venezuela e o impacto da guerra na Ucrânia na região. “O Hemisfério Sul deve reagir e ser ouvido”, frisou o argentino, que inicia seu último ano de mandato.

O senhor é amigo pessoal do presidente Lula. Depois de quatro anos difíceis no relacionamento bilateral, o que se pode esperar?

Nos quatro anos de Bolsonaro, me encarreguei de que o vínculo entre Brasil e Argentina se deteriorasse o mínimo possível. Na verdade, se deteriorava pela atitude de Bolsonaro... desafiadora, de maus-tratos, agressiva. Tentei sempre me calar para preservar esse vínculo, que é importante demais para ser posto em risco. Conseguimos que não se deteriorasse mais do que poderia.

E o que muda agora?

O olhar que temos do mundo. Conversei muito com Lula nos últimos tempos. A percepção que tive de seu discurso de posse é de que ele tem um olhar muito realista do mundo e do Brasil de hoje. Acho que temos valores similares sobre a necessidade de enfrentar o desafio de alcançar uma maior justiça social. O mais importante que temo sé que acreditamos na unidade latino-americana ena ideia de voltara fortalecera região como umpo lo econômico e de desenvolvimento. Com Lula tudo será mais fácil. OBra si léo maior PIB da América do Sule sua ausências nestes anos, na Celac (Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos ), em foros internacionais, no G 20, tudo isso será recupera doe o Brasil terá o lugar que deve ter.

Em 2023, os dois países terão a presidência pro tempore do Mercosul, que não vive seu melhor momento. O que vai propor a Lula para recuperar o bloco?

O Mercosul deve ser fortalecido, ter melhores instrumentos. Compartilho algumas questões colocadas pelop residentedo Uruguai[ LuisLacalle Pou] sobre a necessidade de modernizar o Mercosul em termos institucionais, o que não compartilho é seu olhar, que considero equivocado, do que ocorre no mundo. A pandemia e aguerra na Ucrânia criaram uma crise da globalização. Ocorre um processo de revisão, de realocação de indústrias ... Nesse cenário, as regiõesvoltam ater papelim portante. O esforço da União Europeia( UE) par ater um acordo como Mercosul mostra justamente isso. Temos de fortalecera região porque assim seremos mui tomais fortes. Lula disse isso em seu discurso.

Sobre o acordo entre Mercosul e UE, fontes do novo governo indicam que Lula poderia aceitar o entendimento como está e não reabri-lo. Se esse for o caso, qual será a posição da Argentina?

Eu quero o acordo coma UE, mas no acordo assinado as assimetrias são muito grandes. Acho que temos de melhorar nosso vínculo com a Europa e temos uma oportunidade. Mas quero um acordo mais justo. Como está hoje, é inviável e não por decisão do Brasil ou da Argentina. É impraticável porque a França não quer terminar com os subsídios agrícolas.

Existe muita expectativa na Argentina sobre o governo Lula. Fala-se em acordos entre bancos centrais, novos investimentos…

Quero aproveitar este ano com Lula para dar um impulso à relação bilateral, que nos fortaleça a ambos. A História mostra que o comércio bilateralsempre foi deficitário para a Argentina, e hoje temos a possibilidade de equilibrá-lo vendendo energia ao Brasil, que vai precisar. Teremos gás da jazidade Vaca Mu er ta e comisso poderemos equilibrar abalança comercial. Quer emosque o Brasil continue sendo nosso principal sócio comercial, e vamos buscar mecanismos que facilitem esse comércio.

Seria possível uma posição comum entre Brasil e Argentina sobre a guerra na Ucrânia?

Essa guerra impacta muito nossos países, na inflação, nos preços dos alimentos, da energia, é um problema. O Hemisfério Sul está muito afetado. Como presidente da Celac, tentei que América Latina estivesse muito presente na discussão sobre aguerra. Estive na reunião no G7, também falamos na reunião do G20. Nossa posição é de que enquanto no Norte atiram míssil, no Sul se passa fome. O Hemisfério Sul deve reagir e ser ouvido.

Sobre Venezuela, acha que Brasil e Argentina podem ajudar a redemocratizar o país?

Nos preocupa muito o que acontece na Venezuela.

Todos vemos a imigração dos venezuelanos a nossos países. O que disse ao governo de [Joe] Biden [presidente dos EUA], aos europeus, é que o bloqueio é imperdoável porque castiga as pessoas. A solução não era a invasão militar que propunha [o ex-presidente Donald] Trump, a solução é que os venezuelanos negociem, dialoguem. Somos parte do grupo de contato, liderado pela Noruega. Votamos na ONU contra um relatório contrário à Venezuela elaborado por Michelle Bachelet [ex-alta comissária da ONU para os Direitos Humanos].

Uma posição muito questionada…

De fato, em consequência disso, telefonei para [o presidente Nicolás] Maduro e lhe disse que se o que o relatório dizia não era verdade, ele devia ajudara demonstrar que os direitos humanos não estavam sendo violados. Também liguei para Bachelet, e ela me disse que era importante ter um escritório em Caracas. Liguei para Maduro novamente e o escritório foi instalado. A situação melhorou deforma substancial, e aO NU continua em Caracas vigiando. A segunda questão é eleitoral, e nesse aspecto Maduro também teve gestos de boa predisposição. Agora [em 2024] vem a eleição presidencial, e devem existir garantias para todos.

O senhor visitou Lula na prisão, durante a campanha eleitoral argentina de 2019. O que sentiu quando o viu ser empossado pela terceira vez?

(Fernández se emociona, faz uma breve pausa e prossegue com os olhos marejados). Uma grande emoção. Senti que os brasileiros reconheceram um homem de bem, que foi injustamente perseguido. Fui muito questionado, mas voltaria a ir uma e mil vezes, porque foi muito injusto o que ele viveu. Estamos falando de direitos humanos, da liberdade, da utilização da Justiça para perseguir, coisas sensíveis para o Estado de direito. Senti que cumpri com minhas convicções.

Agora teremos dois presidentes que se falam… Haverá um telefone vermelho?

(Risos) Hoje o telefone vermelho é o WhatsApp.

“Quero aproveitar este ano com Lula para dar um impulso à relação bilateral, que nos fortaleça a ambos. (...) Queremos que o Brasil continue sendo nosso principal sócio comercial, e vamos buscar mecanismos que facilitem esse comércio”