O Globo, n. 32654, 01/01/2023. Economia, p. 13

Desafios urgentes

Cássia Almeida


Os desafios econômicos do governo que toma posse hoje vão muito além da questão fiscal. Apesar do esforço concentrado para recompor o orçamento da União e garantir o Bolsa Família de R$ 600, com a "P EC da Transição ", assuntos igualmente urgentes vão demandar atenção do novo governo: reforma tributária, infraestrutura, produtividade, combate à informalidade, agenda financeira e concessões são questões que, se não forem tratadas já neste primeiro ano de governo, continuarão a condenar o país ao baixo crescimento, dizem especialistas.

— É imperativo modernizar nossa infraestrutura, há muitas questões em aberto. Amais claraéemre lação ao PPI (Programa de Parceria de Investimentos), inovação institucional do governo Temer. Não dá para esperar seis meses, um ano, para ter uma definição sobre as concessões — alerta o economista Claudio Frischtak, um dos maiores especialistas no setor, presidente da Inter.B Consultoria. Segundo a Confederação Nacional do Municípios, há 7 mil obras de infraestrutura paradas no Brasil. O investimento está em 1,7% do Produto Interno Bruto (PIB), abaixo dos 2% registrados entre 2001 e 2020, segundo a Inter.B. O investimento em infraestrutura é majoritariamente privado. A parcela pública caiu de 57,3% em 2010 para 33,6% em 2022. A infraestrutura precária trava o crescimento da produtividade, que tem ficado estagnada nas últimas décadas. A complexidade do sistema tributário é outro ponto a frear a expansão do país. A infinidade de alíquotas, exceções, isenções e benefícios fiscais funciona como um entrave burocrático ao avanço das empresas e intensifica a desigualdade de renda no Brasil, uma das maiores do mundo. Débora Freire, professora da UFMG, afirma que a reforma dos impostos indiretos, aqueles que incidem sobre o consumo, está suficientemente madura para ser aprovada ainda este ano no Congresso.

Fantasma da pobreza

Mesma percepção tem Bernard Appy, futuro secretário especial para Reforma Tributária, conforme afirmou no último seminário do Centro de Cidadania Fiscal, que coordenava, no mês passado, logo depois de ser anunciado para o cargo. Ele reconheceu que não é fácil, mas se declarou confiante de que finalmente será aprovada "uma boa reforma de tributação sobre consumo no Brasil em 2023." Débora chama atenção para o fato de que a reforma está intimamente ligadaà questão fiscal, com efeito no crescimento ena arrecadação. — Acho que tem grandes chances, e é prioridade do novo governo. Obviamente enfrenta um custo político, que é relevante. Mas as propostas estão bem maduras, e as discussões, bem avançadas. Principalmente pelo grande volume de material e análises. Não é muito usual esse volume de estudos de tributação do consumo — afirma.

A reforma passa pela unificação de impostos e alíquotas e pela mudança na forma de cobrançanosestados.Háduas propostasdeemendaàConstituição (PECs) tramitando no Congresso: a PEC 45, na Câmara, e a PEC 110, no Senado. São aspectos econômicos que tornam o país mais ineficiente, menos produtivo e mais desigual. Isso fica evidente no mercado de trabalho com o tamanho da informalidade, situação que é realidade há décadas. Mas, na pandemia, esses quase 40 milhões de trabalhadores ficaram sem renda alguma de uma hora para outra. São cerca de 40% sem proteção social, o que tornou dramática a situação das famílias. Isso obrigou o governo em 2020 a transferir R$ 600 de auxílio emergencial. Mas não foi criada uma política que desse algum tipo de seguro para esses trabalhadores. Segundo Marcelo Medeiros, professor da Universidade Columbia e especialista em pobreza e desigualdade, 60% da população brasileira passaram pela pobreza em algum momento entre 2001 e 2013:

— Sim, o Brasil tem que enfrentar o seu problema grave de mercado de trabalho, que é a informalidade ser muito alta. É difícil com política pública criar empregos, mas é possível aumentar a proteção previdenciária —diz. Medeiros diz que o Brasil protege bem o terço mais rico dos trabalhadores e o terço mais pobre da população, mas há um grupo no meio que está desprotegido, "gente muito perto da pobreza". Segundo o economista, há muita rotatividade para dentro e fora da pobreza: — Tem que simplificar os mecanismos de recolhimento previdenciário, aproveitando a facilidade que o Pix criou, implantando um "Pix trabalhista" para trabalhadores por conta própria, como as diaristas. Ao pagar pelo serviço, o empregador usaria o Pix acrescentando o valor da contribuição previdenciária de 6%. Além disso, ele propõe uma revisão no MEI, que considera precarizante, e nas contratações como pessoa jurídica. Esses expedientes reduzem a arrecadação previdenciária, afirma ele.

E o mundo do trabalho está mudando, digitalizandose, com o avanço de novas tecnologias em todas as áreas — o que se intensificou com a pandemia. Essa nova realidade vai exigir olhar permanente na regulação, segundo Armando Castelar, pesquisador da Fundação Getulio Vargas (FGV). As plataformas, o compartilhamento de informações e os avanços na área financeira são segmentos em que as transformações estão ocorrendo no mundo todo: —Na área do Banco Central, tema questão doopen banking (sistema de compartilhamento dedados financeiros) e amoeda digital, que será uma revolução. Toda essa parte de dados vai continuar avançando e precisará de regulação, para acompanhar a tecnologia.

O desafio é regular as novas situações, mas não se pode agir rápido demais, sob pena de inibira inovação, diz Castelar. O economista afirma, porém, que opa node fundoéa questão fiscal. Sem sinais de controle da dívida pública, os juros sobem e o investimento fica mais caro, dificultando o ambiente de negócios: —O custo do financiamento imobiliário sobe, o crédito para compra de carro fica mais carro. Há repercussão em várias dimensões. Segundo Castelar, na área de regulação, desde 2016 as reformas vinham sendo feitas para melhorar o ambiente de negócios, com teto de gastos (trava ao crescimento das despesas públicas que deve ser mudado neste ano), Lei das Estatais, das agências reguladoras, da liberdade econômica, criação da TLP (taxa do BNDES que segue ado mercado ), marco de saneamento, concessões e privatização da Eletrobras, cita:

— O novo governo parece querer ir na direção oposta.

Captura do Estado

Marcos Lisboa, presidente do Insper, também vê avanços, mas que pararam nos dois últimos anos, com a captura maior dos recursos do Estado por grupos de interesse, o que ele aponta como um dos fatores responsáveis pelo baixo crescimento brasileiro. Segundo Lisboa, essa situação se repete em outros países, mas no Brasil ganhou escala única.

— O ambiente de negócios fica muito distorcido, menos produtivo. Há má alocação de capital, o que leva à baixa produtividade e ao baixo crescimento. A má notícia é que isso tem se agravado nos últimos dois anos. A quantidade de medidas que foram aprovadas no Congresso promovendo novos benefícios e isenções chega a 42, com 12 PECs — alerta o economista. Para Lisboa, que foi secretário de Política Econômica no primeiro governo de Lula, enfrentar essa pauta de distorções, retirando isenções desordenadas, é fundamental para o país entrar em rota de crescimento:

— É uma agenda de R$ 170 bilhões, que tem PEC dos enfermeiros (que estabeleceu um piso salarial para a categoria), auxílio para companhia aérea, projetos de aumento salarial para servidores do Ministério Público, juízes, funcionários do Legislativo. São agendas que vão na contramão dessa pauta. Outros desafios econômicos para que o economista chama atenção são a necessidade de abertura comercial e aformaçãodepessoalnafronteira do conhecimento, para avançar na inovação: —Já fizemos isso com a Embrapa, que foi bem-sucedida.

 

"É imperativo modernizar nossa infraestrutura. Não dá para esperar seis meses, um ano, para uma definição sobre as concessões" _

Claudio Frischtak, presidente da Inter.B Consultoria

"Acho que tem grandes chances (a aprovação da reforma tributária este ano), e é prioridade do novo governo"

Débora Freire, professora da UFMG

"O Brasil tem que enfrentar o seu problema grave de mercado de trabalho, que é a informalidade muito alta" _

Marcelo Medeiros, professor da Universidade Columbia

"Há má alocação de capital. As medidas aprovadas no Congresso promovendo novos benefícios e isenções chegam a 42, com 12 PECs"

Marcos Lisboa, presidente do Insper