O Estado de São Paulo, n. 46785, 20/11/2021. Metrópole p.A26

 

Só 3% das universidades brasileiras têm equidade racial de professores

 

Júlia Marques

Mariana Hallal

 

Eunice Prudente, de 75 anos, foi a primeira negra a se tornar professora da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP), na década de 1980. Até hoje, é a única. "Sofri questionamentos racistas e tive de enfrentá-los", conta ela, que só nos últimos anos viu as turmas ficarem mais diversas. Pelos corredores das universidades públicas, é possível encontrar mais estudantes pretos e pardos – graças às cotas. No comando da sala de aula, porém, esse perfil ainda é raro. Levantamento feito pelo Estadão mostra que menos de 3% das instituições de ensino superior têm número de professores negros que espelha a distribuição racial da região. Em uma década, as cotas ampliaram o acesso na graduação, mas mudar o perfil dos professores é mais lento e difícil. Especialistas dizem que a equidade racial na docência melhora o acolhimento dos alunos, traz ambiente mais diverso a todos, além de ampliar temas e pontos de vista.


A reportagem tabulou dados do Censo da Educação Superior de 2019, do Ministério da Educação. Em São Paulo, 40% da população é negra (preta ou parda), diz o IBGE. Mas na USP só 3,8% dos professores se declaram negros.

O recorte leva em consideração universidades onde ao menos 75% dos professores fizeram autodeclaração de raça e que têm mais de 50 docentes. Entre 823 analisadas, só 23 têm número de professores negros que reflete a distribuição racial no Estado. A única pública é a Universidade do Estado do Amapá. O avanço é lento. Ao todo, 16,2% dos professores universitários são negros. Em 2012, eram 13,2%. Há ainda lacunas que prejudicam entender o cenário, pois a declaração de raça não é obrigatória.

 

DISPARIDADE. Por trás desse quadro está o acesso restrito à pós-graduação. O doutorado é exigido em concursos públicos na maioria das federais. Só 29% dos alunos de pós eram negros, segundo a Capes, órgão do MEC. Racismo estrutural e vulnerabilidade econômica dificultam o caminho até a titulação, uma vez que as bolsas pagam pouco. "Temos número significativo de alunos negros na graduação que acabam no setor privado", diz Fabiana Schleumer, pró-reitora adjunta de Extensão da Federal de São Paulo (Unifesp), que é negra. A Unifesp e mais instituições têm cotas na pós para ampliar o acesso.

Ações afirmativas, porém, não dão resultados imediatos. Desde 2014, uma lei prevê reserva de 20% das vagas em concursos para docentes nas federais, mas parte das instituições não adota a regra, sob argumento de fazer seleções pequenas. A lei só é aplicada quando o número de vagas é igual ou superior a três. Concursos por área de conhecimento abrem, em geral, uma ou duas vagas.

Na tentativa de resolver isso, a UFRJ aprovou em 2020 resolução que prevê os 20% sobre o total de vagas. A Federal Fluminense (UFF) adotou o modelo este ano. Fora do escopo federal, a Unicamp discute cotas em concursos. Procurada, a USP não se manifestou.

José Vicente, reitor da Faculdade Zumbi dos Palmares, é a favor de aperfeiçoar processos seletivos. "Precisa haver mérito, mas não o mérito exclusivo dos títulos e do quanto a pessoa sabe sobre um assunto." A Zumbi é a única paulista com total de docentes negros similar ao perfil do Estado.

 

ACESSO. "Precisou coragem", resume Eunice sobre a trajetória no Largo de São Francisco. Os relatos de sala de aula vão desde o descrédito por parte de estudantes à chance de incentivar discussões sobre questões raciais e de gênero.

"Era muito questionada pelos alunos que vinham de escolas privadas. A primeira escola pública deles era a universidade e nunca haviam tido professores negros. Muitos questionamentos eram racistas", diz ela, também secretária municipal da Justiça. Nas suas pesquisas, discutiu a criminalização do racismo, antes mesmo de isso entrar na Constituição. "O acesso ao mestrado e doutorado urge ser democratizado. Quem vai mergulhar nas questões econômicas, históricas, sociológicas, antropológicas da gravíssima desigualdade socioeconômica do País?"

A médica Flávia Silva, 46 anos mais jovem que Eunice, não pensava em seguir na academia após a graduação porque não se sentia acolhida. "Não me lembro de ter colegas negros na faculdade e tive só dois professores negros. Eu via a academia como um lugar elitista e embranquecido."

Sua visão mudou na Federal do Recôncavo Baiano (UFRB), onde dá aulas de Medicina desde 2019. Para ela, diversificar a docência ajuda a fazer com que o conhecimento reflita a realidade do Brasil. "O Recôncavo da Bahia é a região mais preta do mundo fora de África. É importante estudar as doenças mais prevalentes nessa população", cita Flávia.

Jonathan Vicente, mestrando de Medicina Preventiva, conta que teve três professores negros na graduação, em faculdade privada. Agora, na USP, seus professores são brancos. "A representatividade é importante para que o aluno se sinta mais confortável em mostrar seu trabalho, sua pesquisa", diz ele, que cursa mestrado por incentivo de uma docente negra. O próximo passo é tentar o doutorado e ele mira o exterior. Para o futuro, o plano é a docência. "A população negra está começando a entrar na academia, e eu quero seguir essa carreira." 

 

"A primeira escola pública deles era a universidade e nunca haviam tido professores negros. Muitos questionamentos eram racistas."

Eunice Prudente