Valor Econômico, v. 20, n. 4872, 02/11/2019. Opinião, p. A14

Lei do saneamento é avanço, mas ainda restam incertezas



No calor dos debates sobre o novo marco legal do saneamento básico, um parlamentar baiano de oposição criticou duramente o projeto de lei que busca atrair investimentos privados para o setor e observou: “Se essa proposta passar, os pequenos municípios do interior da Bahia vão ficar sem coleta e tratamento de esgoto”.

O sinal de alerta sobre danos futuros chega a ser risível quando se olha o drama que se vive nas cidades brasileiras. Seis mil piscinas olímpicas de esgoto são despejadas por dia nos rios do país. Seis mil. Por dia. Talvez seja a razão pela qual algumas pessoas que têm acompanhado as discussões no Congresso Nacional chamem esse projeto sobre o novosobre o novo marco regulatório do saneamento de “PL Tiririca” - pior do que está, não fica.

A proposta, aprovada em comissão especial da Câmara dos Deputados na semana passada, tem mérito enorme ao criar um ambiente muito mais favorável a aportes privados - sem os quais seria impossível alcançar os R$ 600 bilhões necessários para a universalização dos serviços.

Novos contratos de programa (firmados diretamente entre prefeituras e companhias públicas de água e esgoto), sem licitação e sem metas, ficam vedados. Os atuais vão sendo substituídos por contratos de concessão, em concorrência aberta e com indicadores de fácil monitoramento. Troca-se um sistema que gira em torno de estatais com baixa capacidade de investimento por outro baseado no apetite do setor privado para oferecer serviços.

No entanto, restam dúvidas sobre como implementar a lei e fazer os novos contratos de concessão - o desafio pode ser particularmente grande em algumas áreas. O projeto aprovado atribui aos Estados a prerrogativa de formar regiões metropolitanas ou unidades regionais de saneamento, mediante lei votada nas assembleias legislativas, com agrupamentos de municípios que tenham viabilidade econômica. Pode-se juntar localidades maiores e menores, superavitárias e deficitárias, filé com osso. A ideia é justamente criar uma blindagem contra o discurso alarmista de que pequenas cidades vão ficar sem saneamento porque o investidor privado terá olhos apenas para as grandes.

A rigor, o Estado inteiro poderia constituir uma única unidade regional de saneamento. Teria a mesma abrangência das companhias estaduais hoje em dia. Ficaria difícil sustentar a crítica de que o novo marco legal matará o sistema de subsídios cruzados que, bem ou mal, leva água tratada (mas quase nunca coleta de esgoto) aos rincões mais afastados.

Pelo texto recém-aprovado, os Estados têm 180 dias para desenhar suas unidades regionais de saneamento. Se isso não ocorrer, a União poderá atuar de “forma subsidiária” aos governos estaduais e estabelecer blocos de referência com municípios de um mesmo Estado. Mas caberá às prefeituras, titulares do serviço, aderir voluntariamente ou não aos blocos desenhados nos gabinetes de Brasília.

Há boas chances de funcionar na maioria dos casos, mas convém manter um olhar cauteloso. O projeto define o fim de 2033 como prazo para que seja alcançada a universalização dos serviços (99% de abastecimento de água e 90% de tratamento de esgoto), podendo chegar a 2040 em casos onde o investimento for muito pesado e tornar-se inviável atingir a meta antes.

Imagine-se um dos casos mais graves do país: o de Porto Velho (RO), com menos de 5% dos dejetos coletados e uma estatal incapaz de expandir sua rede pública. Ninguém pode enxergar a concessão como alternativa mais viável para os investimentos. De olho numa tarifa mais módica, entretanto, a prefeitura pode lutar por não associar-se a outros municípios de Rondônia e fazer um contrato sozinha. A União poderia utilizar sua nova prerrogativa legal e desenhar os blocos de referência, mas corre o risco de esbarrar na falta de “enforcement” da legislação. Há, como incentivo, apenas uma menção de que os entes federativos mais ágeis na formatação das concessões têm prioridade para receber recursos não onerosos - como empréstimos do BNDES e do FGTS - do governo federal.

Mesmo com elementos ainda nebulosos, o projeto de lei nº 3.261/19 traz perspectivas animadoras. Outros pontos, mais consensuais, envolvem a edição de normas de referência pela Agência Nacional de Águas (ANA) - hoje existe uma “salada regulatória” com a proliferação de agências estaduais e municipais - e a cobrança de tarifa nas residências ou estabelecimentos onde a rede estiver disponível. Justifica-se, assim, a aprovação do projeto em plenário o mais brevemente possível.