Valor Econômico, v. 20, n. 4871, 01/11/2019. Legislação & Tributos, p. E2

Assimetrias do fretamento colaborativo 

Fernando Villela de Andrade Vianna



A sociedade vivencia um momento de desejável expansão de inovação tecnológica, que deve ser protegido e regulado pelo poder público. Desde 2015, sustentamos em distintos foros a legitimidade da atividade exercida no âmbito do transporte privado individual de passageiros (TPIP) por usuários cadastrados em aplicativos.

Táxi há muito deixou de ser serviço público de fato e passou a ser atividade econômica de utilidade pública; informada, pois, pelos princípios da livre iniciativa e livre concorrência. Foi exatamente isso que o legislador ordinário pretendeu ao promover alterações na Lei nº 12.587, de 2012.

Em maio deste ano, o Supremo Tribunal Federal (STF) pôs fim a essa discussão e decidiu, por unanimidade (ADPF 449 e RE 1.054.110), que a proibição ou restrição da atividade de transporte por motorista cadastrado em aplicativo é “inconstitucional, por violação aos princípios da livre iniciativa e livre concorrência”, além de ter fixado que os municípios e o Distrito Federal “não podem contrariar os parâmetros” estabelecidos pela União e pela Constituição Federal. Afinal de contas, trata-se de atividade econômica de utilidade pública, não serviço público, nos termos da lei.

Agora, a questão que a Suprema Corte brasileira deverá enfrentar no futuro próximo se refere ao “transporte privado coletivo de passageiros”, que busca aplicar de forma automática e sob um efeito “carona” o raciocínio jurídico adotado nos casos acima. É preciso, contudo, cautela e uma avaliação mais aprofundada acerca da natureza do serviço público - em contraponto à atividade econômica de utilidade pública, bem como as significativas diferenças entre os regimes jurídicos e as políticas públicas envolvidas.

Diferentemente do TPIP, o transporte público coletivo de passageiro, que é regulado em nível federal pela Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT), depende do efeito de rede para a sua atuação saudável e para atender aos princípios da continuidade, da eficiência e da universalidade. Afinal, como corolário do transporte ter sido alçado a direito social, nos termos do artigo 6º da Constituição, as empresas de transporte público coletivo de passageiros devem observar diversas obrigações sociais, tais como as gratuidades para distintas classes de usuários em situação de vulnerabilidade social, além do cumprimento dos horários preestabelecidos de partida e chegada, independentemente da quantidade de passageiros embarcados.

Sob a ótica econômica, essas políticas públicas só podem ser cumpridas por meio de subsídios cruzados, na medida em que o governo não arca diretamente com esses custos. Por isso, é necessário muito mais reflexão antes de se equiparar a discussão constitucional subjacente no caso do TPIP ao transporte público coletivo de passageiro, justamente pelo seu risco sistêmico de frustração dessas políticas públicas e pela flagrante concorrência desleal, fruto da assimetria regulatória nas obrigações.

Foi justamente nesse sentido que caminhou o Judiciário do Paraná em recente decisão didática sobre essa matéria, tomada no bojo do processo nº 0002487-06.2019.8.16.0179: “[r]elevante ressaltar os ônus suportados pelas permissionárias, como o atendimento a todas as regulamentações impostas pelo poder público, (...) o que interfere sobremaneira na composição do preço dos serviços de transportes. Logo, em se mantendo a discrepância de ônus entre as permissionárias e as Rés, incorre-se em situação de concorrência desleal.”

Na prática, empresas como a Buser não exercem, direta ou indiretamente, a atividade de fretamento. Trata-se de um “salto triplo carpado hermenêutico”, para lembrar expressão cunhada pelo ministro Ayres Britto. É, na verdade, serviço completamente distinto e que merece uma avaliação individualizada e uma regulação específica, tudo isso para que se r

Até porque, dentro da perspectiva econômica, é natural que haja o efeito de cream skimming no setor de transporte: as empresas de transporte que adotam o modelo de negócio “Buser” passarão a concentrar seus serviços apenas nas rotas mais lucrativas, especialmente em horários de pico, canibalizando dos prestadores de serviço público os subsídios cruzados necessários para manter todas as suas rotas não lucrativas, frustrando a economia de rede necessária para a manutenção de todas as obrigações sociais. A elevada margem permitirá o investimento maciço em atividades de marketing e patrocínio, facilitando uma campanha de cascata reputacional que se afasta da necessária discussão jurídica.

O serviço público depende justamente dos efeitos de rede para a sua manutenção e o cumprimento das obrigações sociais impostas pelo legislador e pelas políticas setoriais. Sem os subsídios cruzados, o prestador de serviço público não conseguirá manter a continuidade, a eficiência e a universalidade desse serviço, atingindo com mais crueldade os interesses dos usuários mais dependentes do transporte coletivo.

Com isso em mente, parece-nos prudente exigir que a União Federal promova uma análise de impacto regulatório mais estruturada antes de se permitir a ampliação do serviço de fretamento por meio de tecnologia e plataformas, principalmente diante do cenário altamente provável de que sua autorização não regulada venha a gerar um efeito concreto de concorrência odiosa com os prestadores do serviço público, com as consequentes assimetrias regulatórias. Eventual regulação de serviços similares ao Buser deve passar, necessariamente, por limites regulatórios tendentes a reduzir o cream skimming e a obrigatoriedade de oferecimento de gratuidades.

Fernando Villela de Andrade Vianna é sócio do Setor de Direito Público, Regulação e Infraestrutura do Vella Pugliese Buosi e Guidoni (VPBG), mestre em Regulação do Comércio pela New York University (NYU) e membro da Comissão de Direito Público da OAB-RJ

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