O Globo, n. 32697, 13/02/2023. Brasil, p. 7

Aula de RPG ou PET

Ludmilla de Lima


Enquanto disciplinas como História, Sociologia e Educação Física perdem espaço, matérias fora do comum ou com nomes nada explicativos como “O que rola por aí”, “RPG”, “Brigadeiro caseiro”, “Mundo Pets SA” e “Arte de morar” começam a fazer parte da realidade de estudantes do ensino médio nas redes públicas do país. Mudanças curriculares incluídas na reforma que atinge os últimos três anos da educação básica —além de uma base nacional comum obrigatória, há agora os chamados itinerários formativos, voltados para áreas de conhecimento e formação técnica de interesse dos jovens —vêm incomodando alunos, pais e professores, que apontam problemas também na falta de estrutura das escolas, já que a maioria não possui laboratórios nem internet, e de preparo do corpo docente para essa revolução em sala de aula.

O resultado é uma enxurrada de mensagens nas redes do ministro da Educação, Camilo Santana, pedindo a revogação do modelo, tema de abaixo-assinado encabeçado pelo deputado federal Glauber Braga (PSOL-RJ). O ministro diz que essa é uma “agenda complexa de política educacional” e, diante do desafio da melhoria da qualidade do ensino médio, “respostas fáceis não cabem”:

— Falar em revogação sem aprofundar o debate sobre quais são os elementos problemáticos e as promessas não cumpridas não seria justo com os nossos jovens e não nos ajuda a avançar. Defendemos a retomada do diálogo democrático sobre o sentido do ensino médio e sobre como podemos, juntos e com a prudência necessária, entregar a melhor escola.

Camilo adianta que o MEC planeja pesquisar com a sociedade o tema, para corrigir falhas e levantar boas práticas.

— A construção dos itinerários formativos, por exemplo, é um ponto bastante desafiador. Vamos investir na qualificação desse debate e numa indução e coordenação do MEC para apoiar as redes de ensino —acrescenta o ministro.

Os itinerários formativos são quatro: Matemáticas e suas Tecnologias, Linguagens e suas Tecnologias, Ciências da Natureza e suas Tecnologias e Ciências Humanas e Sociais Aplicadas.

Sem novos investimentos

A reforma se transformou em lei em 2017, e 2022 foi um ano teste. Sem um norte do MEC nos últimos anos sobre a implantação (que vai até 2024), cada estado pôs em prática de uma forma. Em alguns, os itinerários já são ofertados na 1ª série. Em outros, a partir da 2ª, após os alunos cursarem Projeto de Vida. Coube ainda aos estados definir novas disciplinas com aumento de carga horária (de 2,4 mil horas para 3 mil horas nos três anos).

Professor da rede estadual da Bahia, Iago Gomes vive uma situação inusitada:

— Minha formação é Língua Portuguesa, e estou dando aula em várias disciplinas fora da minha área para completar carga horária. Uma é Arte de Morar, eletiva de geografia — conta o professor na cidade de Candeal. —As disciplinas da base nacional comum perderam carga horária. As menos espremidas foram Língua Portuguesa e Matemática. Há professores de História e Geografia que perderam metade da carga e têm que pegar disciplinas de outros campos.

Em Campinas, um dos filhos da pesquisadora Erica Mariosa, na 2ª série, teve na última semana aula de RPG, disciplina obrigatória.

— Se olharmos pela ótica da estratégia e criatividade, até faz sentido. Mas o professor não estava preparado para isso. Virou uma aula com autorização para jogar —diz ela, mãe também de uma aluna da 3ª série que já estuda no novo modelo e, temendo a falta de preparo para o Enem, faz um cursinho gratuito. — A ideia é terem aulas que ajudem a lidar com a vida. Na prática, isso não acontece.

De acordo com a Secretaria da Educação do Estado de São Paulo, as eletivas são aulas temáticas propostas pelos professores a partir dos Projetos de Vida dos alunos e da realidade da comunidade. Na rede, até como fazer brigadeiro é assunto em sala de aula, assim como o mundo dos pets. No estado do Rio de Janeiro, matérias como “O que rola por aí” deixam todos em dúvida. De acordo com a Secretaria de Estado de Educação, a ideia, nesse caso, é “explorar e interagir com as diversas formas de expressão utilizadas no universo digital”. Ainda no Rio, “De olho na rede digital!”, direcionada para a compreensão das linguagens em diferentes mídias, esbarra na ausência de computadores e internet.

— Uma das promessas para a juventude brasileira é de que ela terá liberdade de escolha com a flexibilização do currículo, suprimindo disciplinas que seriam chatas, velhas. O que vemos, no entanto, é um monte de disciplinas aleatórias com pouco conteúdo. E tem situações como a do Paraná, onde alunos estão inda para escola assistir aula pela TV —critica Fernando Cássio, pesquisador da Universidade Federal do ABC (UFABC) e integrante da Rede Escola Pública e Universidade (Repu). —Uma outra promessa, de qualificação profissional, não envolve construção de salas de aula, laboratórios e escolas técnicas.

Presidente da União Brasileira dos Estudantes Secundaristas (Ubes), Jade Beatriz defende uma espécie de reforma da reforma:

— Somos oposição ao novo ensino médio, que não foi construído por quem está dentro da escola pública. Mas revogar por revogar e voltar para o que era antes não faz sentido. As escolas públicas têm que entrar no século XXI —diz a estudante, para quem o ensino médio deve incorporar tecnologias, com todas as escolas contando com equipamentos e rede wi-fi.

A favor do novo modelo, Claudia Costin, diretora do Centro de Políticas Educacionais da FGV, pondera sobre a necessidade de o MEC tomar as rédeas da situação: o MEC tomar as rédeas da situação:

— A implementação do novo ensino médio começou na pandemia com o Ministério da Educação completamente ausente desse processo. Não houve articulação para ajudar a pensar em critérios. O que precisamos agora não é revogar, porque ninguém merece voltar a ter 4h de aulas com 13 matérias. Mas olhar para o que está dando certo e discutir como aperfeiçoar.

Líder de Políticas Educacionais do Todos pela Educação, Gabriel Corrêa tem opinião semelhante:

— O novo modelo precisa ser aperfeiçoado. Precisamos garantir que os jovens tenham itinerários formativos que preparem de fato para o ensino superior ou mercado de trabalho e que os professores tenham as condições necessárias, com mais investimentos na infraestrutura das escolas.