O Globo, n. 32696, 12/02/2023. Brasil, p. 11

Na selva de pedra



O Pico do Jaraguá, entre as zonas Oeste e Norte de São Paulo, é um lugar sagrado para os indígenas da etnia guarani mbya. Muito antes de a cidade se tornar a maior metrópole da América Latina, os corpos dos líderes das tribos eram levados ao cume “para que seus espíritos subissem ao céu”, como explica o cacique Verá Mirim. Lá eles caçavam quatis, tatus, macacosprego e veados, enquanto as crianças eram ensinadas a pescar em pequenos riachos.

Em meio à selva de pedra, longe dos ianomâmis que hoje estão no centro de uma crise humanitária, eles somam uma população nômade e seminômade de 8 mil pessoas, também em situação de vulnerabilidade. São, de acordo com o IBGE, a 22ª maior etnia do país, entre 305 identificadas, o que não é pouco e inspira atenção das autoridades. São remanescentes de famílias que escaparam de ser dizimadas por colonizadores portugueses e chegaram ali por volta da década de 1960, vindas do litoral paulista. Ganharam o reconhecimento da União em 1987, quando houve a regularização daquela terra. Hoje, vivem sob a ameaça da especulação imobiliária.

— O governo incentivou a especulação imobiliária a avançar e fez com que a gente ficasse exposto à violência. Quando pedimos apoio, chegamos a ouvir que não estamos sujeitos aos direitos indígenas porque vivemos próximos a bares, a rodovias —conta Tiago Karai, líder dos guaranis, no Jaraguá.

Hoje, cerca de 800 indígenas vivem em seis aldeias — chamadas tekoá, em guarani — no Jaraguá. De 13 mil indígenas da capital, menos de 1.700 moram em aldeias. Os demais estão espalhados por bairros como Real Parque, Ipiranga e Perdizes.

Nos quatro anos de governo Jair Bolsonaro, os guaranis mbyas sobreviveram na ausência do poder público para a defesa de suas terras e com pouca oferta de vacina contra a Covid-19. Assim como no Norte do país, a Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai), ligada ao Ministério da Saúde, também foi esvaziada e faltou até combustível para gestantes, idosos e outros indígenas que precisaram de atendimento médico fora das aldeias.

Demarcações

O cacique Verá Mirim aposta com otimismo que mudanças virão, com a criação do Ministério dos Povos Indígenas pelo novo governo. Entre elas, um desfecho para a batalha jurídica em torno das terras dos guaranis mbyas:

— Estamos otimistas, mas sabemos que o governo é novo e demanda tempo até que as coisas entrem nos eixos. E há outras urgências, porque tem lugar onde os indígenas estão morrendo. A capital paulista abriga — em alguns casos junto a municípios vizinhos — quatro terras indígenas regularizadas:

a Jaraguá, a Guarani da Barragem (no extremo Sul da cidade), a Krukutu (também na Zona Sul) e a Rio Branco Itanhaém (que se estende também a São Vicente e Itanhaém). Somadas, essas áreas cobrem 2.910 hectares. Outras duas áreas tradicionalmente ocupadas pelos guaranis já foram declaradas como terras indígenas, mas aguardam a conclusão do processo de demarcação. Uma delas é a de Tenondé Porã, que vai do Sul da capital paulista a pontos dos municípios de Mongaguá, São Bernardo do Campo e São Vicente.

A portaria declaratória foi assinada em 2016, mas faltam ainda a homologação e a regularização das áreas. A outra terra indígena paulistana que aguarda ação do governo tem 532 hectares de extensão. É onde vivem as famílias de Verá Mirim e Tiago Karai, que construíram suas moradias ali para espantar invasores. Quando chegaram, em 2017, descobriram que um vizinho havia colocado cercas para reivindicar o terreno. Os demais guaranis do Jaraguá vivem em uma área de só 1,7 hectare, medida que corresponde à de aproximadamente dois quarteirões —é o menor território indígena do país. A Funai reconheceu o território Jaraguá em 2013, e a portaria foi assinada dois anos depois, em 2015. No governo de Michel Temer (MDB), uma nova portaria anulou o reconhecimento, mas o Ministério Público Federal (MPF) obteve uma liminar contra a medida.

O impasse jurídico, entretanto, continua. Em São Paulo, o Plano Diretor para o desenvolvimento da cidade até 2029 passa por revisão e a versão prévia propõe estudos de impacto para qualquer ação na vizinhança de terras indígenas. —Precisamos ter cuidado para não repetir na cidade o que ocorreu na região dos ianomâmis com a expansão das áreas ocupadas por garimpeiros. Há aqui uma pressão imobiliária muito forte. Se não houver ação do poder público na defesa dessas reservas, vamos ver cada vez mais construtoras avançando esses limites —diz o vereador Hélio Rodrigues (PT).

O professor Emerson de Oliveira Souza, doutorando em Antropologia Social e integrante do Centro de Estudos Ameríndios da USP, é da etnia guarani nhandeva. Sua família vive na maior terra indígena do estado, perto de Bauru. As etnias que hoje ocupam esse território eram, no passado, nômades que migravam periodicamente do Sul para o Centro-Oeste. Mas acabaram confinadas àquele território paulista por conta da chegada de fazendeiros europeus no início do século XX e da política desenvolvimentista do governo Getúlio Vargas.

“Esquecidos”

Morador da Zona Leste da capital, Emerson diz que os indígenas que vivem em contexto urbano são discriminados e que a Sesai priorizou grupos aldeados na campanha de vacinação contra o coronavírus:

— Quem está fora é esquecido pelo poder público, como se não fosse indígena — critica o professor, acrescentando que ele mesmo sofreu, em sala de aula, os efeitos da escalada discriminatória dos últimos anos.

— Foram muitos questionamentos e preconceito, além de terem sumido as políticas de inclusão. Questionado pelo GLOBO, o Ministério da Saúde não respondeu se houve alguma restrição ao atendimento de saúde de indígenas não aldeados. A pasta informou que a unidade responsável por assistir a população paulista, com sede em Curitiba, conta hoje com 537 profissionais e tem 5.200 indígenas cadastrados.

A Prefeitura de São Paulo disse que recolheu contribuições para o Plano Diretor em visitas aos territórios indígenas e listou ações de assistência. Entre elas, destacou duas unidades básicas de saúde indígena, que atendem a 1.950 pessoas registradas junto à administração municipal.