O Globo, n. 32688, 04/02/2023. Saúde, p. 19

Tão longe, tão perto

Bernardo Yoneshigue


Nesta semana, São Paulo, se juntou à lista de localidades que contam com legislações próprias para incluir no Sistema Único de Saúde (SUS) o acesso à cannabis medicinal — medicamentos à base de canabidiol (CBD) e tetrahidrocanabinol (THC), duas das cerca de 500 substâncias da planta Cannabis sativa. Hoje, os produtos do tipo estão disponíveis no país majoritariamente por meios privados. A sanção da nova lei, que ainda precisa ser regulamentada, reacendeu a discussão sobre esse tipo de terapia no país.

Especialistas apontam que, apesar das evidências científicas e de um aumento expressivo da demanda nos últimos sete anos, ainda há desafios no acesso e no conhecimento dos médicos para receitar os óleos. Segundo a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), foram concedidas 850 autorizações para importação de medicamentos em 2015 —ano em que a prática passou a ser permitida no Brasil. Desde então, esse número cresceu 9.311%, e chegou ao total de 79.995 novos pacientes autorizados em 2022, quase o dobro do ano anterior, quando foram 40.070 liberações. Nesse tempo, as formas de acesso caminharam, porém lentamente. Emilio Figueiredo, advogado da Rede Jurídica pela Reforma da Política de Drogas (Rede Reforma), explica que ele ainda envolve majoritariamente a importação pelo próprio paciente.

— A lei hoje cria duas formas de acesso à cannabis medicinal. A primeira é via produto importado, como estabeleceu a resolução da Anvisa em 2015, em que o próprio paciente precisa fazer o procedimento. Há uma ampla lista de produtos autorizados, que é atualizada periodicamente. E existe uma outra resolução da Anvisa, de 2019, que passou a permitir que distribuidoras importem em estoque e disponibilizem em farmácias. Existem mais de 20 autorizadas, mas ainda são escassos —diz o especialista. Allan Paiotti, ex-diretor do Hospital Oswaldo Cruz e CEO da Cannect, startup especializada em cannabis medicinal, afirma que os principais motivos para essa ausência é o valor alto para disponibilizá-los nas drogarias.

— Quase 100% do mercado hoje é de importação individual. Esse canal da farmácia leva tempo para maturar no país, porque é muito custoso para a farmacêutica vender o produto numa rede grande de drogarias enquanto o volume de prescrições pelo médico ainda é baixo —diz Paiotti.

Isso faz com que sejam poucas e caras as ofertas dos produtos com CBD e THC em farmácias brasileiras, o que leva os próprios pacientes a optarem pela importação, um processo de entrega que leva de 10 a 15 dias.

Importação

Para isso, primeiro, o médico prescreve o medicamento ao paciente, com uma receita controlada azul. Depois, é o próprio paciente quem precisa dar entrada na Anvisa para que seja concedida uma autorização para importação. Em seguida, com a receita e o aval da agência, ele pode fazer um pedido com uma empresa que traga o produto de fora. Isso tem motivado a criação de startups como a Cannect, que conectam médicos, pacientes e importadores. Em menos de dois anos, a empresa já conta com 4 mil médicos cadastrados.

No ano passado, atendeu quase 8 mil pacientes. Na plataforma, eles têm acesso à consulta com o profissional, recebem a receita, se for o caso, e um suporte para solicitar o aval. Além disso, a própria Cannect oferece mais de 800 produtos para importação, enquanto somente cerca de 25 são autorizados para venda nas farmácias do Brasil. Porém, mesmo importado, o preço é elevado e pode variar de centenas a milhares de reais o frasco, a depender da concentração do CBD e do THC. Um dos motivos é porque os poucos laboratórios que podem fabricar o produto no Brasil, como o PratiDonaduzzi, no Paraná, precisam importar o Insumo Farmacêutico Ativo (IFA), uma vez que o plantio da Cannabis sativa é proibido no país, ainda que para fins medicinais.

— O país está muito atrasado se levarmos em consideração lugares próximos, como Argentina, Chile e Uruguai —avalia Eliane Nunes, psiquiatra e diretora da Sociedade Brasileira de Estudo da Cannabis Sativa (SBEC).

Via da justiça

Rodrigues, da Rede Reforma, explica que uma das formas que famílias de baixa renda têm encontrado para contornar o entrave do preço é conseguir, por meio de uma decisão judicial, o acesso via SUS ou custeado pelo plano de saúde. Outra maneira dentro da lei é por habeas corpus que dão o direito ao plantio com fins terapêuticos. Hoje cerca de cinco associações têm autorização judicial para isso no Brasil, em cidades como Rio (Apepi e Canapse) e São Paulo (Cultive).

— Nós produzimos o óleo em Campina Grande, em João Pessoa, envasamos e distribuímos para cerca de 40 mil famílias. Tem sido um sucesso —conta Cassiano Gomes, fundador e diretor-executivo da Associação Brasileira de Apoio para Cannabis (Abrace Esperança). Essas dificuldades têm levado ao crescimento de leis que buscam garantir o acesso pelo SUS, a exemplo da sancionada recentemente em São Paulo. Há legislações semelhantes em outras unidades federativas, como o Distrito Federal, e em cidades como Búzios.

— O problema é que as leis não têm se traduzido em um real acesso porque há uma incoerência entre a legislação e o que é regulamentado pela Anvisa. Muitas vezes a lei determina como medicamentos, mas na Anvisa a cannabis medicinal entra numa categoria regulatória própria, chamada de “produtos de cannabis” —afirma Emilio. O especialista, assim como outros ouvidos pela reportagem, acredita que as leis são um bom sinal, porém defende que existam normas com abrangência nacional:

— Na Câmara dos Deputados existe um projeto de lei que já chegou a ser aprovado, mas hoje é alvo de recurso e não seguiu ainda para o Senado. Esse recurso ainda não foi julgado, está há quase um ano e meio em espera. A Fiocruz chegou a firmar, em 2020, um acordo com o Prati-Donaduzzi para transferência de tecnologia. A ideia era fabricar o CBD na fundação e fornecê-lo ao SUS. Mas, na época, a Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no SUS (Conitec) recomendou que os medicamentos não fossem incorporados à rede.

Preconceito

Muitos dos estigmas que envolvem o debate da cannabis medicinal hoje são causados pela constante confusão entre as substâncias terapêuticas da planta e a maconha, droga também derivada dela. Embora o THC, um dos canabinoides autorizados, de fato seja responsável pelo efeito psicoativo, isso ocorre apenas em quantidades superiores às permitidas pela Anvisa, que estabelece teor máximo de 0,2%, com a exceção de casos específicos. O THC e o CBD já foram comprovados como eficazes para uma série de doenças, como epilepsia e esclerose múltipla. As evidências são fortes também para o alívio de sintomas de dores crônicas, de náuseas e vômitos provocados pelo tratamento do câncer.

Para contornar o preconceito no âmbito médico, Ailane Araújo, diretora e fundadora do Centro Brasileiro de Referência em Medicina Canabinoide (CBRMC) e do Núcleo de Desenvolvimento em Medicina Canabinoide e Integrativa (NDMCI), defende palestras e cursos destinados aos profissionais da saúde:

— Precisamos levar esse conhecimento para as instituições de ensino, que se torne uma cadeira nas universidades, para que os médicos consigam tratar os pacientes de uma forma assertiva.