O Estado de S. Paulo, n. 46726, 22/09/2021. Internacional, p. A12

Para competir com Pequim, EUA terão de fortalecer alianças

Carlos Gustavo Poggio


O principal tema do primeiro discurso de Joe Biden na Assembleia-geral da ONU não foi mencionado diretamente: a China. Apesar de não citar o país pelo nome, Biden deixou claro que a política externa americana superou a era do 11 de Setembro e se concentra naquele que é o verdadeiro desafio neste século 21. A competição geopolítica com a China estava presente em grande parte do discurso, da questão dos direitos humanos às mudanças climáticas e o fortalecimento de alianças tradicionais.

Em particular, na parte final do discurso, Biden fez um contraste entre democracias e autocracias. Ele chegou a afirmar que não deseja uma nova Guerra Fria, mas apenas após dizer que os EUA estariam preparados para competir de forma "vigorosa".

A referência explícita à "competição vigorosa" é importante, pois ilustra as diferenças entre os contextos de 2001 e 2021. Em 2001, os EUA ocupavam uma posição singular nas relações internacionais, com uma disparidade de poder inédita na história do sistema moderno de Estados. O país colhia os frutos de uma década de vitória na Guerra Fria, com superioridade econômica, militar e cultural que levou o chanceler da França à época a classificar os EUA como "hiperpotência". Nesse contexto de unipolaridade, o país não vislumbrava competidores.

Os atentados de 11 de setembro de 2001 deram aos EUA uma ameaça difusa na forma do terrorismo transacional. Dada sua superioridade, muitos formuladores de políticas imaginaram que tais ameaças poderiam ser combatidas pelo vasto poderio militar americano. Duas décadas, trilhões de dólares e milhares de tropas perdidas depois, o cenário é distinto. Distraídos nas ocupações de Iraque e Afeganistão, sucessivos governos não deram a devida atenção à rápida ascensão chinesa no sistema internacional, um acontecimento geopolítico muito mais relevante.

Em seu discurso, Biden admitiu sem rodeios uma dolorosa e cara lição que os EUA aprenderam: "poder militar não resolve tudo". Assim, Biden aproveitou o discurso na ONU para reforçar a lógica por trás da retirada do Afeganistão: encerrar as guerras de 2001 para recalibrar a política externa dos EUA tendo em vista os desafios de 2021, focando recursos em regiões consideradas mais estratégicas, como o Indo-pacífico.

Se Biden falou sobre os fins, também expôs os meios para perseguir esse objetivo. Uma parte importante do discurso foi dedicada à importância de se fortalecer as alianças tradicionais. Um exemplo dessa política de reorientação para a região do Indo-pacífico foi o recente acordo fechado com Reino Unido e Austrália para compartilhamento de tecnologia de submarinos nucleares para frota australiana, em um contexto de aumento de tensões entre Austrália e China.

O fato de Biden não ter mencionado esse acordo em seu discurso é indicativo de algumas dificuldades que os EUA estão enfrentando com seus aliados, que não se sentiram adequadamente consultados durante a confusa retirada do Afeganistão. O acordo irritou profundamente os franceses, que estavam em conversas avançadas com os australianos para fornecimento de submarinos convencionais. O chanceler da França chamou o acordo de "uma facada nas costas" e Paris chegou a chamar de volta seu embaixador em Washington, um gesto inédito na relação entre os dois países. Assim, se o discurso de Biden dá indicativos sobre a sua visão de mundo, realizá-la será uma tarefa completamente diferente.

É professor de Relações Internacionais da FAAP