O Globo, n. 32741, 29/03/2023. Mundo, p. 16

Embolação pré-eleitoral

Janaína Figueiredo


A decisão do ex-presidente argentino Mauricio Macri (2015-2019) de anunciar que não participará das eleições presidenciais deste ano sacudiu o tabuleiro político nacional, faltando sete meses para o pleito que definirá quem será o sucessor de Alberto Fernández. Com a vice-presidente Cristina Kirchner e Macri fora da corrida, a Argentina entrou numa etapa de pré-campanha eleitoral que terminará em agosto, quando as Primárias Abertas Simultâneas e Obrigatórias (Paso) determinarão quem, finalmente, disputará a eleição presidencial.

Até lá, as únicas duas certezas no país são a força —ainda difícil de dimensionar — do deputado e candidato de extrema direita Javier Milei, o único que não disputará a candidatura de seu partido, Avança Liberdade, e a fraqueza da aliança governista Frente de Todos, que, segundo a grande maioria dos analistas locais, tem poucas chances de vencer.

As Paso, criadas por lei no governo de Cristina (20072015), são eleições primárias nas quais partidos e alianças partidárias elegem seus candidatos. No entanto, muitas vezes, como aconteceu com o próprio Fernández em 2019, apenas um candidato participa. Por isso, muitas vezes as primárias argentinas acabam se transformando numa grande pesquisa eleitoral, a mais confiável de todas, porque o voto é obrigatório. Em 2019, as Paso mostraram o favoritismo de Fernández, que dois meses depois bateu Macri nas urnas.

Meses de negociações

Este ano, o único candidato que não terá rivais nas primárias será Milei, fenômeno eleitoral das eleições legislativas de 2021, quando foi eleito deputado pela primeira vez, e ficou em terceiro lugar na cidade de Buenos Aires. O economista e líder da extrema direita argentina, admirador dos ex-presidentes Jair Bolsonaro e Donald Trump, está em campanha desde o ano passado e, segundo algumas pesquisas, teria chances de conquistar uma vaga no segundo turno das presidenciais.

Para vencer uma eleição no primeiro turno na Argentina são necessários 45% dos votos, ou 40% com uma vantagem de pelo menos dez pontos percentuais em relação ao segundo colocado. Hoje, nem Milei, nem nenhum dos demais précandidatos exibe o fôlego necessário para conseguir isso. Os próximos meses serão de negociações, tanto na aliança opositora Juntos pela Mudança, liderada por Macri, como na governista Frente de Todos (formada por peronistas e kirchneristas), onde Cristina, Fernández e outros dirigentes e governadores disputam espaços de poder. A vice-presidente avisou no final do ano passado, no dia em que foi condenada por corrupção, que não pretende disputar nenhum cargo este ano.

— As pesquisas eleitorais não ajudam muito a entender o cenário atual, porque temos mais de 50% de indecisos e falta muito tempo até outubro. O melhor indicador que temos é o de confiança no governo, e hoje apenas 14% dos argentinos avaliam positivamente a gestão de Fernández. Isso mostra a baixa probabilidade de que o peronismo e o kirchnerismo consigam reter o poder — explica Ignácio Labaqui, consultor e professor da Universidade Católica Argentina (UCA).

Embora o chefe de Estado ainda especule com a possibilidade de disputar a reeleição, dentro do governo predomina a sensação de que Fernández, finalmente, perceberá que seu nome poderia implicar uma derrota ainda mais amarga para o peronismo. Surge, então, a dúvida sobre quem será o candidato do governo, e os nomes cotados no atual momento são os do ministro da Economia, Sergio Massa, do embaixador no Brasil, Daniel Scioli, do governador da província de Buenos Aires, o kirchnerista Axel Kicillof, do deputado Máximo Kirchner, filho da vice-presidente, e de alguns dirigentes peronistas, entre eles o ex-governador da província de Salta Juan Manuel Urtubey.

Ser governo não dá votos

Massa já disse a colaboradores que não pretende concorrer nas Paso. Kicillof teria mais chances se tentasse a reeleição como governador da província de Buenos Aires, principal distrito eleitoral do país, e, assim, preservar uma base de poder para o kirchnerismo em caso de derrota nas presidenciais. A eventual pré-candidatura de Máximo gera dúvidas, porque o deputado, assim como Cristina, se descolou do governo de Fernández há muito tempo e seria difícil voltar a fazerem campanha juntos. Por enquanto, portanto, os nomes mais prováveis para as Paso da aliança governista são os de Scioli e Urtubey, que já estão em campanha.

— Scioli tem uma habilidade notável, e acho que ainda vai crescer. Não podemos descartar totalmente uma candidatura de Massa, mas é pouco provável pelo desgaste como ministro da Economia. O kirchnerismo hoje é muito impopular e, sinceramente, acho que um candidato de Cristina levaria uma surra muito grande — aponta Juan Negri, professor da Universidade Di Tella.

Do lado da oposição, sem Macri, a disputa será entre o prefeito de Buenos Aires, Horacio Rodríguez Larreta, e a exministra Patricia Bullrich, atual presidente do Pro, partido fundado pelo ex-presidente. Muitos analistas argentinos coincidem em afirmar que a opositora aliança Juntos pela Mudança — que além do Pro inclui partidos como a União Cívica Radical (UCR) e a Coalizão Cívica, entre outros —é a grande favorita para as próximas presidenciais.

— Hoje, a Juntos pela Mudança está na liderança, o governo em segundo lugar e Milei em terceiro. Milei pode ser individualmente o mais popular, mas não tem estrutura nacional, e tudo vai mudar quando tivermos os candidatos das demais alianças confirmados —afirma Carlos Fara, diretor da Fara e Associados.

Economia será crucial

Segundo suas pesquisas, o candidato de extrema direita tem uma base de apoio consolidada, mas poucas chances de crescer além dos 20% ou 30% que poderia conseguir, no melhor dos casos.

— Na Argentina, não temos uma disputa ideológica, os seguidores de Milei querem que ele solucione os problemas econômicos. É um fenômeno, claro, não descarto que possa ganhar. Mas acho o cenário menos provável —frisa Fara.

Com uma inflação anual acima de 100%, quase 50% dos argentinos vivendo abaixo da linha da pobreza, uma seca histórica, escassez de dólares, apagões e salários desvalorizados, a economia será um dos temas centrais da campanha presidencial. Isso explica, em grande medida, o crescimento de Milei, sobretudo em setores humildes, onde o candidato da extrema direita captou votos que eram de Macri, e também do peronismo. A questão é saber se, na hora de decidir, os argentinos optarão por um outsider, como nunca antes aconteceu do país, ou por partidos tradicionais, provavelmente da oposição.

Nos próximos dois meses, 12 províncias elegerão governadores, e os pleitos regionais serão um termômetro importante para avaliar as chances de todos os partidos para as presidenciais.

— Na Argentina, o peso dos partidos tradicionais é muito grande. Milei poderia estar no segundo turno, e já seria algo inédito. Mas ganhar, ainda parece difícil —conclui Negri.