O Estado de S. Paulo, n. 46720, 16/09/2021. Metrópole, p. A16

Falta de verba para o Ipen ameaça a produção de remédios contra câncer

Denise Luna


O Instituto de Pesquisas Energéticas e Nucleares (Ipen), vinculado ao Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações (MCTIC), informou esta semana aos serviços de medicina nuclear que a partir do próximo dia 20 vai suspender temporariamente a produção, por impossibilidade orçamentária para aquisições e contratações. Especialistas já falam em apagão no tratamento de câncer no País e em prejuízos para até 2 milhões de pacientes.

O órgão importa radioisótopos de produtores na África do Sul, Holanda e Rússia, além de adquirir insumos nacionais para produção de radioisótopos e radiofármaco. Na Medicina, radioisótopos são utilizados em estudo, diagnóstico e tratamento de diversas doenças, sobretudo câncer. No documento a que o Estadão teve acesso, o Ipen explica que está fazendo todos os esforços para manter a produção, mas destaca o cenário desafiador e o momento delicado que a Medicina passa diante da pandemia do Covid-19. “O IPEN-CNEN, a CNEN e o MCTI entendem perfeitamente, de forma solidária, que a ausência temporária dos geradores de 99Mo/99mtc e dos radiofármacos aos hospitais e às clínicas no País resultará em transtornos familiares de grande monta”, admite na carta ao mercado.

O MCTIC foi procurado, mas não se manifestou. O caso no Ipen ocorre na mesma semana em que o governo do presidente Jair Bolsonaro criou uma nova estatal dentro do plano de privatização da Eletrobras, a Empresa Brasileira de Participações em Energia Nuclear e Binacional, a Enbpar. Serão destinados R$ 4 bilhões do Orçamento deste ano para constituir a nova empresa pública, segundo o Ministério da Economia.

O presidente da Sociedade Brasileira de Medicina Nuclear (SBMN), George Coura Filho, avalia que entre 1,5 milhão e 2 milhões de pessoas serão prejudicadas com a falta de distribuição dos radiofármacos do Ipen, o que inclui não apenas os doentes de câncer (doença mais lembrada quando se fala de radioterapia). Ele recebeu na terça-feira a carta do Ipen, e juntamente com outras entidades, vai tentar junto aos ministérios relacionados uma saída para o problema.

Os remédios do Ipen representam cerca de 10% dos medicamentos usados para tratar doenças. “O Ipen é produtor quase exclusivo no Brasil dos isótopos radioativos que são utilizados na medicina nuclear. Por exemplo, no diagnóstico de cintilografia óssea para procurar metástase óssea em paciente com câncer, na cintilografia miocárdica para avaliar pacientes com doença coronariana, enfartados”, explicou.

O Ipen fabrica 25 diferentes radiofármacos, ou 85% do fornecimento nacional. Para manter a produção, o órgão aguarda a aprovação pelo Congresso Nacional de um projeto de lei que adicionaria R$ 34,6 milhões ao seu orçamento. Outros R$ 55,1 milhões estão sendo buscados pelo MCTIC para completar os R$ 89,7 milhões que o instituto precisa para produzir os radiofármacos até dezembro. “O fato de recursos orçamentários extras ainda não estarem disponíveis no Instituto, até o momento, implica inexistência de lastro em crédito orçamentário. Tão logo tenhamos a informação quanto ao recebimento dos recursos orçamentários extras e, consequentemente, à normalização nos fornecimentos, entraremos em contato imediatamente”, informa o Ipen na carta aos estabelecimentos que utilizam a medicina nuclear.

Sem cura. Um dos mais prejudicados será o paciente com câncer de tireoide, que depende 100% do iodo radioativo, sob risco de perder a chance de cura. “Mas o universo de pacientes vai muito além do câncer. Tem paciente pediátrico em que a gente faz cintilografia renal dinâmica, para avaliar obstrução. Numa criança, pode resultar na perda do rim se não for feito”, alertou George Coura Filho.

De acordo com a presidente da Uddo diagnósticos médicos, Beatriz Cancegliero, também conselheira da Abdan, a medicina nuclear atende no Brasil cerca de 10 mil pacientes por dia, a maioria (70%) pela rede pública. “Todos os procedimentos de medicina nuclear em câmaras de cintilografia são realizados 100% com material do Ipen, que é o tecnécio (material radioativo) de monopólio do Estado brasileiro. Os materiais para tratamento também são de referência do Ipen, sendo o iodo 131 o de maior utilização, usado para o tratamento de câncer de tireoide e hoje também somente comercializado pelo IPEN/CNEN”, informou.

Para o presidente da Associação Brasileira para o Desenvolvimento de Atividades Nucleares (Abdan), Celso Cunha, a crise é grave e haverá um apagão no tratamento de câncer no País. Ele explica que o Ipen não está conseguindo importar um mineral chamado molibdênio, que serve de base, após processado pelo Ipen, para a produção de vários produtos. “O molibdênio vem de fora e a legislação impede que a importação seja feita por empresas privadas. Sem dinheiro, o mercado ficará desabastecido e as clínicas que fazem o diagnóstico e tratamento de câncer vão parar”, alerta Cunha.

Desastre. Em publicação do Sindicato dos Trabalhadores do Serviço Federal de São Paulo (Sindsef-sp), a falta de recursos para o Ipen é classificada de “desastre sem precedentes”. O sindicato informa que o problema vem sendo relatado desde o início do ano e o Ipen tem feito “malabarismo” para se manter em atividade.

Quase exclusivo

“O Ipen é produtor quase exclusivo no Brasil dos isótopos radioativos. Por exemplo, no diagnóstico de cintilografia óssea para procurar metástase óssea em paciente com câncer, na cintilografia miocárdica para avaliar pacientes com doença coronariana...”

George Coura Filho

Presidente da SBMN