O Estado de S. Paulo, n. 46718, 14/09/2021. Metrópole, p. A12

Desemprego e solidão pioram abuso de drogas

Felipe Resk


Marcelo enterrou a mãe em meio à pandemia. Quinze dias depois, foi a vez de um irmão. Mais duas semanas, outro irmão. De luto, descontou no álcool. Para Lívio, pesaram o isolamento social e as incertezas diante de um vírus desconhecido. Também passou a beber de domingo a domingo. Já Filipe ficou sem emprego, voltou à cocaína e acabou indo morar na rua. Agora, busca reabilitação: “Cansei de só sobreviver, quero voltar à vida.”

Em agosto, o Estadão foi a duas comunidades terapêuticas e uma república, mantidas pelo governo de São Paulo, para contar histórias de quem perdeu o controle na crise sanitária, e tenta retomar a autonomia sobre a vida. As unidades prestam assistência a dependentes químicos. Para preservar os acolhidos, os nomes usados são fictícios.

Trauma, perda de renda, mudança brusca de rotina e vulnerabilidade social estão na raiz do consumo compulsivo de álcool e de outras drogas, relatam psicólogos, pesquisadores e assistentes sociais. “Percebemos o aumento até pelo número de ligações e mensagens recebidas nas redes sociais”, diz Denis Munhol, coordenador de uma unidade visitada pela reportagem.

Em 2020, as mortes ligadas a “transtornos mentais e comportamentais por causa do uso de álcool” subiram 23,9% no País, segundo dados do Ministério da Saúde. Ao todo, houve registro de 8 mil óbitos, ante 6.445 no ano anterior – a maior alta ao menos desde 2008.

Estudo da Organização Pan-americana da Saúde (Opas), de novembro, diz que 42% dos brasileiros relatam beber mais álcool na pandemia. Com 3.799 entrevistados, o trabalho indica que a chance de beber com mais frequência subiu 73% diante de quadros graves de ansiedade.

Em nota, o Ministério da Saúde diz que os dados de mortes por álcool são “preocupantes”, mas que “não há como fazer inferências de correlações, ou mesmo de causalidade, utilizando um único indicador” em relação à pandemia. Segundo a pasta, há “ações permanentes” e os Centros de Atenção Psicossocial Álcool e Drogas (Caps), especializados em transtornos, atendem todas as faixas etárias, sob “ótica interdisciplinar” em situações de crise ou na reabilitação psicossocial.

Recaídas. O auxiliar de cozinha Lívio Augusto, de 28 anos, passou a usar álcool e cocaína todo dia na pandemia. O estalo veio de repente. Ao se dar conta, já havia se tornado maltrapilho e pesava apenas 44 quilos, quase metade do seu porte habitual. Estava sozinho e longe de casa, trabalhando em um prostíbulo no interior de Minas para sustentar o vício. A visão lhe caiu como um susto: “O que estou fazendo aqui?”. Segundo relata, isso foi em março e serviu de estopim para buscar ajuda. Ele está em tratamento desde 10 de agosto, em uma comunidade terapêutica de Ribeirão Preto (SP), onde nasceu. Por trás da tentativa de retomar a dignidade, Lívio carrega uma história de uso precoce de drogas, rompimentos com a família, abstinências e recaídas.

Teve o primeiro contato com a cocaína aos 11 anos, influenciado por amigos. Aos 17, começou a usar maconha e substâncias sintéticas. Foi internado pela primeira vez em 2016. Com o vício sob controle, o jovem atuava na realização de eventos. Até que veio a pandemia. “De uma hora para outra, eu estava sem trabalho e trancado em casa, com duas irmãs gestantes e um padrasto diabético”, diz. “Tinha medo de sair e passar a doença para eles, mas só aguentei dois meses de isolamento.” Sem renda, arrumou emprego em uma pastelaria e voltou a abusar das drogas. “Tudo que eu fazia era com o objetivo de usar mais. Gastava de R$ 700 a R$ 800 por semana e o dinheiro foi acabando. Cheguei ao ponto de me deparar com a prostituição.”

Dados da Secretaria de Desenvolvimento Social paulista mostram que, de abril de 2020 a julho de 2021, a maioria dos atendidos na rede pública eram homens (88,4%), de até 43 anos (72,9%). As drogas mais comuns são álcool (26,7%) e cocaína (19,8%). Em São Paulo, a rede pública estadual tem 1.377 vagas em 64 comunidades terapêuticas ou repúblicas do Recomeço, principal programa contra o uso indevido de drogas. Mas as unidades precisaram reduzir a capacidade e reservar parte das vagas para quarentena, necessária nas duas primeiras semanas de tratamento, o protocolo anticovid.

Mesmo no setor privado, gestores relatam fila de espera. Esses locais acolhem dependentes químicos que demandam assistência social, com atendimento psicológico e atividades com foco na melhoria da qualidade de vida e resgate da autonomia. Já casos de intoxicações severas ou surtos psiquiátricos são levados a hospitais.

“Nosso olhar é de que a droga é uma expressão social de dor. Organicamente, pode se tornar uma doença, mas que deve ser trabalhada sob a perspectiva de cuidado e controle”, diz a psicóloga Eliana Borges, coordenadora estadual de Políticas Sobre Drogas. “O tratamento é necessário a partir do momento que a vida passa a girar em torno do consumo, com perda de autonomia e de relações sociais.” Parte dos casos está ligada a traumas ou prejuízos sociais. “A droga é transversal a esse processo: se focar nela, não resolvo.” O tratamento é pensado para seis meses, mas a saída pode ser antecipada ou adiada.

Pelo levantamento do Recomeço, 20,4% dos atendidos viviam nas ruas antes da assistência. “Nem sempre seis meses é o suficiente para retomar o vínculo com a família. Às vezes, é pouco para uma relação que passou anos sendo machucada”, continua. “Cerca de 60% terminam e não têm para onde voltar. A comunidade terapêutica não pode ser uma redoma que protege da droga. Porque, no dia que tirar a redoma, a pessoa despenca.”

Foi a experiência do operador de empilhadeira Filipe Brás, de 34 anos, que usa cocaína desde os 13 e está na quarta internação. “Perdi o emprego, me distanciei da família e fui morar na rua. A ociosidade que a rua proporciona deixa a gente ainda mais receptivo à droga”, descreve. “Na pandemia, não tive oportunidade de trabalho.”

A maior parte dos assistidos é de baixa renda e escolaridade. Exceção, a publicitária Joana Santos, de 44 anos, morou na Califórnia e chegou a coordenar uma franquia de idiomas. Órfã da mãe desde a infância e com o pai alcoólatra, Joana desenvolveu vício em álcool e cocaína. Nunca conseguiu manter emprego. “Havia vezes em que ia trabalhar bêbada ou saía da sala para dar ‘tiro’ no banheiro”, diz ela, que trabalhou de atendente de padaria, mas foi dispensada no início da pandemia.

Joana carrega uma tatuagem com o nome dos pais no antebraço direito. Ao lado, há o desenho de quatro bonequinhos de mãos dadas – representação de si e dos três irmãos. “Hoje, a relação com a minha família é muito ruim”, diz. “Ao mesmo tempo que não confiam mais na minha recuperação, também não me deixam livre para que tente caminhar com as minhas próprias pernas.”

Ela já passou por internação hospitalar, clínica de reabilitação e está voluntariamente em uma das comunidades terapêuticas do Estado desde junho, período em que se mantém em abstinência. “Quero descobrir porque me tornei essa pessoa. Tenho casa própria, um cachorro para cuidar e uma vida para viver. Basta eu mesma me ajudar”, discorre. “Estou há dois meses sem usar nada. Mas é saindo daqui que a gente tem de enfrentar os monstros.”

Renascer. Toda noite, o pintor Davi Torres, de 41 anos, rega a horta, ajuda em outras tarefas coletivas e depois senta no banquinho para fumar um cigarro com calma. Em oito meses, saiu da condição de morador de rua para viver em uma república. Está sem álcool, cocaína e crack: “Eu renasci. Renasci de verdade.”

Voltada para pessoas em fase de retomada de vínculos sociais e reinserção no mercado de trabalho, a república é uma última etapa de assistência a dependentes químicos. A ideia é que funcione como uma casa e atende quem resgatou a autonomia, mas não tem onde morar. Os acolhidos têm as chaves e liberdade para escolher da decoração às compras da semana. “A convivência tem sido muito harmônica, todos dividem as responsabilidades”, diz ele. “Dos 13 que entraram comigo, só três ficaram os seis meses.”

Antes dessa etapa, o acolhido tem de ser encaminhado por uma unidade básica de saúde — normalmente um Caps, o que nem todo município tem. Depois, passa por uma comunidade terapêutica, instalada em cidades-pólo, às vezes distante do seu local de origem.

Coordenador técnico de uma comunidade, o assistente social Denis Munhol usa a própria história como exemplo. “Com 18 anos, já bebia, fumava e conhecia cocaína”, conta. “Mesmo assim, fiz três anos de Administração. Até que conheci o crack e perdi tudo. Cheguei a roubar meu irmão que estava doente.” Em 2009, foi para uma comunidade terapêutica, largou a droga e agora trabalha para outros seguirem esse caminho. “O que me fez virar a chave foi me aceitar como gente, ser humano. Não sou forte de tudo, mas não sou fraco de tudo também.”