O Globo, n. 32736, 24/03/2023. Brasil, p. 11

Da usina para o mar

Reynaldo Turollo Jr.


A Eletronuclear deixou de informar imediatamente aos órgãos de fiscalização um vazamento de material radioativo em setembro do ano passado na usina de Angra 1 que lançou água contaminada na Baía de Itaorna, em Angra dos Reis, segundo documentos obtidos pelo GLOBO. A estatal só comunicou o fato ao Ibama e à Comissão Nacional de Energia Nuclear (CNEN) 21 dias depois. A companhia estimou que 90 litros tenham ido para o mar. O caso é alvo de uma ação civil e o Ibama autuou a estatal em R$ 2 milhões por descarte irregular de substância radioativa, além de R$ 101 mil por descumprimento de condicionante, em fevereiro.

A Eletronuclear alega que um “pequeno volume” do material foi “lançado de forma involuntária no sistema de águas pluviais” e se tratou de um “incidente operacional”, sem a necessidade de cumprir o rito de notificações obrigatórias em caso de acidente. A estatal acrescentou que, após analisar o episódio, não foi encontrado “nenhum resultado significativo”.

Mas a CNEN, o Ibama e o Ministério Público Federal afirmam que houve demora na comunicação às autoridades, o que gerou dúvidas sobre os dados fornecidos pela Eletronuclear.

A juíza Monica Maria Leone Cravo, da 1ª Vara Federal de Angra dos Reis, determinou na quarta-feira que a Eletronuclear avalie os possíveis efeitos negativos à Baía de Itaorna e divulgue publicamente “informações objetivas” sobre o acidente e as medidas adotadas para remediar os danos.

O lançamento foi registrado no dia 16 de setembro, mas só chegou ao conhecimento de autoridades fiscalizadoras no dia 29 do mesmo mês. Uma denúncia anônima foi enviada ao Instituto Estadual do Ambiente (Inea), que enviou o relato ao Ibama e à CNEN. Em 30 de setembro, servidores do Ibama fizeram contatos com funcionários da Eletronuclear, que inicialmente negaram qualquer incidente, conforme um relatório do órgão ambiental.

No mesmo dia, a Eletronuclear enviou uma nota a um veículo de imprensa que noticiou o caso, classificando a denúncia anônima de inverídica. Na ocasião, a empresa dizia que, numa inspeção de rotina, foi detectado um ligeiro aumento dos níveis de radiação em uma das salas de trabalho por causa de água empoçada em um ralo, rapidamente drenada e contida.

No entanto, em 7 de outubro, a Eletronuclear notificou o Ibama sobre o vazamento no mar, e no dia 11, a CNEN. A comissão fez uma fiscalização e registrou, em um relatório de 20 de outubro, que “chama a atenção a questão de demora para informar a situação ao órgão regulatório”.

A CNEN questionou os motivos do atraso, especialmente porque dias antes a usina tinha recebido a visita presencial de técnicos da comissão. “Estranho tal evento não ter sido informado”, destacou a comissão.

Depois que a reportagem foi publicada no site de O GLOBO, a CNEN reconheceu ontem que a Eletronuclear deveria ter informado as autoridades sobre o vazamento, mas que, apesar do erro de procedimento, o material radioativo lançado no mar não representa riscos para a saúde humana e para o meio ambiente. “A CNEN notificou o operador que eventos dessa natureza devem sempre ser prontamente reportados à Instituição e permanece acompanhando a situação”, afirmou a comissão, em nota.

Em seu relatório sobre o vazamento, com base nas informações da Eletronuclear, o Ibama afirma que não estava claro o parâmetro usado pela empresa para a classificação do nível do acidente. Segundo a Eletronuclear, teria sido de nível 2, o que significaria “incidente” dentro da escala Ines (International Nuclear and Radiological Event Scales).

Criada em 1990 pela Agência Internacional de Energia Atômica, a Ines estabelece sete níveis de acidentes. Os técnicos do Ibama dizem, no relatório de fevereiro, que as informações da Eletronuclear não explicitaram se foi usado esse parâmetro. Mas de acordo com o CNEN, o evento estaria no nível 0, onde não há nenhuma mudança na segurança, “bem como nenhuma consequência à população geral”.

Ação civil

Na terça-feira, o procurador da República Aldo de Campos Costa ajuizou uma ação civil pública na Justiça Federal em Angra dos Reis contra a Eletronuclear, acusada de “ausência de transparência e irresponsabilidade na comunicação do acidente nuclear”.

A Eletronuclear afirmou que vai contestar os relatórios do Ibama e da CNEN que apontam atraso na comunicação do acidente. “(A princípio) verificou-se que o problema era oriundo de água empoçada em um ralo localizado no edifício auxiliar. Tratava-se de uma quantidade mínima de líquido que foi prontamente drenada e, em grande parte, contida nos próprios sistemas de coleta da usina. Posteriormente, verificou-se que um pequeno volume deste material foi lançado de forma involuntária no sistema de águas pluviais (que levou ao mar)”, detalhou a empresa.

“Inicialmente por conta própria e depois sob demanda do Ibama, a empresa intensificou a monitoração radiológica no local de despejo das águas pluviais, sem encontrar nenhum resultado significativo”, acrescentou a estatal.

O presidente da ENBPar, Ney Zanella dos Santos, reconheceu que a Eletronuclear deveria ter comunicado aos órgãos de fiscalização imediatamente. A ENBPar é uma uma holding criada no ano passado para viabilizar a privatização da Eletrobras. Zanella já era presidente da estatal na época do vazamento.

—Se vazou um pouco que seja, deveriam ter avisado. Se não avisaram, erraram — disse Zanella.

Questionado se sabia do vazamento, Zanella afirmou que “não ficou registrado na minha memória”. Mas disse que não houve risco:

— O componente trítio (um isótopo do hidrogênio) na água estava muito aquém do nível máximo tolerado.

A Prefeitura de Angra dos Reis entrará como coautora na ação do Ministério Público Federal, informou ontem o prefeito Fernando Jordão:

— Em nenhum momento fui informado sobre o caso. As responsabilidades precisam ser apuradas.