O Estado de S. Paulo, n. 46713, 09/09/2021. Economia & Negócios, p. B13

Rótulos machistas desafiam a mulher 'brava' no trabalho

Larissa Buchard


Não importa se Dia Nobre ganhou o Prêmio de Melhor Tese pela Capes ou se Amanda Serra é líder de comunicação de uma empresa de tecnologia. Elas têm em comum o fato de, em sua atuação profissional, não raro serem chamadas de bravas, nervosas ou exaltadas. Os adjetivos são muitos para desacreditar e rotular as mulheres no mercado de trabalho. Dia e Amanda sofrem o mesmo que muitas mulheres num contexto machista: ter de provar todos os dias que merecem estar naquele lugar.

A pesquisa "O Fenômeno da Impostora", feita pela Discovery Brasil e lançada em julho, apontou que 41,7% das 1.250 entrevistadas acreditam que outros homens da sua área não as enxergam no mesmo nível. Entre os sintomas apontados, 53,7% lembram mais das críticas que recebem do que dos elogios. A pesquisa explica que o fenômeno da impostora, geralmente, é falado do ponto de vista individual, mas a causa dele está no coletivo.

Apesar de popularmente conhecido como síndrome do impostor, não é uma doença. O fenômeno é uma experiência vivida, em sua maioria, por mulheres que possuem alto desempenho.

O termo foi atribuído pelas pesquisadoras Pauline Rose Clance e Suzanne Imes, da Universidade do Estado de Georgia, em 1978, no artigo The Imposter Phenomenon in High Achieving Women: Dynamics and Therapeutic Intervention (O fenômeno do impostor em mulheres de alto desempenho: dinâmica e intervenção terapêutica, em português). Clance e Imes realizaram um estudo envolvendo 150 mulheres doutoras e especialistas em suas áreas. Elas constataram que não importava o quanto essas mulheres tinham de experiência e conhecimento, elas não se sentiam bemsucedidas.

O contexto no qual as pesquisadoras fizeram o estudo mostrava um mundo do trabalho masculino, não acostumado a ver mulheres, explica Maria da Conceição Uvaldo, psicóloga do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (USP). Em reuniões, era comum a maioria dos homens questionar por que uma mulher ocupava tal lugar.

"Isso tem a ver com todo um ambiente que não propicia a autoestima, a mulher está sempre sendo colocada em prova. Se os homens têm de fazer isso o tempo todo, as mulheres têm de fazer muito mais", explica Maria.

Com isso, as empresas e as instituições precisam começar a entender sua parcela de culpa no fenômeno do impostor.

Depois de terminar o doutorado, Dia Nobre, de 37 anos, escritora e professora da Universidade Federal de Pernambuco, foi convidada para dar uma palestra sobre os resultados da tese. No final da apresentação, um colega homem disse a ela ter uma ótima indicação de obra. "Ele disse: 'Olha, tem um livro que eu li há pouco tempo, não lembro o nome do autor, mas é muito fácil de encontrar'."

O livro era Incêndios da Alma, escrito pela própria Dia, Prêmio de Teses da Capes em 2015 e tema da palestra. "Ele indica o próprio trabalho da autora sem sequer lembrar, ou seja, ele presumiu que era um homem que tivesse escrito", diz a escritora.

A situação que Dia viveu é uma relação de poder, baseada em estereótipos criados na sociedade sobre quem a mulher deveria ser e onde deveria estar. Papéis que se espalharam no mercado de trabalho: a mulher deve cuidar da família; ela não é forte o suficiente para o trabalho; a colega está sempre nervosa.

"Esses estereótipos reforçam uma certa negativa de que as mulheres são o 'outro' dentro do espaço de trabalho", explica Regina Vieira, doutora em Direito pela Universidade de São Paulo (USP) e professora do Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade do Oeste de Santa Catarina (Unoesc).

As trabalhadoras também vivem em constante vigilância sobre o tom de voz que utilizam. "Qualquer tom que muda, qualquer coisa que varia, qualquer desrespeito são seus hormônios", conta a pesquisadora.

Amanda Serra, de 32 anos, é jornalista e gerente de conteúdo de uma empresa multinacional de tecnologia. Mãe de Lia, de 2 anos, enfrenta a pressão de estar sempre disponível para a filha e para o trabalho. Como líder de conteúdo, ela precisa sempre controlar suas ações. Em uma reunião, um colega perguntou se ela estava brava e lhe ofereceu um chocolate. "Isso vai minando tanto a nossa autoestima, a nossa maneira de trabalhar e nos questionamos: Eu não posso ser firme? Ou será que eu tenho que ser firme? Nesses momentos eu me pergunto: e se eu fosse um homem?"

Se o fenômeno do impostor é uma experiência que tem bases coletivas, seu combate não deve partir apenas das mulheres. Arlane Gonçalves, consultora de Diversidade e Cultura Inclusiva, passa pelo desafio de ensinar às empresas como diminuir a desigualdade de gênero.

Segundo ela, o problema não passa apenas pela meta de ter o maior número de mulheres nos cargos, mas também em detalhes do dia a dia que fazem a diferença. Pensar os adjetivos utilizados para descrever as mulheres, espaços para que sejam ouvidas e punições para denúncias de assédio e abuso – de forma a não prejudicar a carreira delas – são ações que fazem a diferença. "Não é uma questão de paliativos nem de notas de repúdio, é uma questão de endereçar a raiz do problema com intenção", explica.

Preconceito

"Qualquer tom (de voz) que muda, qualquer coisa que varia, qualquer desrespeito, são seus hormônios"

Regina Viera

Doutora em Direito pela Universidade de São Paulo