O Estado de São Paulo, n. 46742, 08/10/2021. Metrópole p.A16

 

País chega a 600 mil mortos; atingidos pela Covid-19 transformam dor em luta

 

Para muitos que perderam parentes ou amigos na pandemia, a luta agora é fazer com que a tragédia não seja esquecida
Leon Ferrari / COLABOROU MARIANA HALLAL

 

O Brasil chegará hoje à marca de 600 mil mortos pela covid19 – mais gente do que as populações de sete capitais do País, como Florianópolis e Vitória. O último balanço, divulgado ontem às 20h, apontava 599.865 vítimas. Com o avanço da vacinação e a queda de infectados, cresce nos hospitais e nas ruas a sensação de que o pior foi superado. Especialistas, porém, destacam que a crise sanitária pode ter reviravoltas e seus efeitos são duradouros.

Segundo balanço da Fiocruz, entre 12 e 25 de setembro o total de hospitalizados no País caiu 27,7% e o de óbitos, 42,6%. Em 25 Estados, a taxa de ocupação de leitos de UTI covid é inferior a 60% – exceto Distrito Federal e Espírito Santo. "Olhando os dados, consideramos que o pior da pandemia passou", diz o superintendente de Vigilância em Saúde do governo catarinense, Eduardo Macário. "Mas ainda não podemos largar medidas de prevenção. Seguimos com média elevada de casos novos e boa parte da população não está (completamente) imunizada", completa ele. Algumas cidades – como São Paulo e Rio – já preparam o relaxamento da exigência de máscaras, o que médicos consideram precoce.

Em relatório do Observatório da Covid-19, da Fiocruz, o fim da crise sanitária é previsto para os primeiros meses de 2022. "Mas o fim da pandemia não representará o fim da 'convivência' com a covid-19, que deverá se manter como doença endêmica e passível de surtos mais localizados", diz o texto.

Vacina. Apesar da demora do governo federal na compra de vacinas e de o próprio presidente Jair Bolsonaro colocar em dúvida a eficácia dos produtos, a adesão aos imunizantes é alta. Diferentemente dos EUA, onde a hesitação resultou em uma nova escalada de óbitos, 69,7% dos adultos já tomaram ao menos uma dose, ante 64% entre os americanos. "A vacinação já está incutida no caráter cultural da sociedade, isso nem as fake news conseguiram destruir", avalia o médico José Cherem, da Universidade Federal de Lavras (UFLA).

As falhas da gestão Bolsonaro no combate à pandemia têm sido alvo de Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) no Senado. Fora do Congresso, também há busca por reparação e responsabilização. "Meu luto foi luta desde o início", conta Paola Falceta, à frente da Associação de Vítimas e Familiares de Vítimas da Covid-19. A entidade apoia parentes de mortos pelo coronavírus nos pedidos trabalhistas e previdenciários, além de pleitear indenização do poder público.

"Havia condições de vacinar toda a população brasileira de janeiro a abril", diz o médico sanitarista e professor da USP Gonzalo Vecina. Para ele, as mortes que ocorreram a partir de abril eram evitáveis. Para os especialistas, a falta de coordenação nacional também será um obstáculo nos próximos capítulos da pandemia. "Se falar de 3.ª dose, não há vacina suficiente. Não tenho visto o governo falar sobre comprar mais doses", acrescenta Vecina, ex-presidente da Anvisa e colunista do Estadão. A injeção de reforço tem sido recomendada para idosos, profissionais de saúde e imunossuprimidos.

Sequelas. Além do represamento de consultas, exames e cirurgias na quarentena, a pressão dos sequelados da covid será um desafio para gestores de saúde. "Uma parte da população, que foi infectada e não morreu, está com problemas musculares, respiratórios, renais, cardiológicos e neurológicos", alerta Vecina. "A covid longa dura seis meses ou mais, com necessidade de apoio fisioterápico, social e psicológico."

O número desses afetados é desconhecido. Eduardo Macário, de Santa Catarina, destaca que o protocolo pós-covid já é tema de discussões entre os conselhos de secretários e o Ministério da Saúde, mas cobra suporte da União. "Os recursos precisam vir do governo federal." Questionado, o Ministério da Saúde disse, em nota, que lançou em 2020 projeto para reabilitação dos pacientes.

 

_______________________________________________________________________________________________________________________

 

Busca de Justiça para as famílias das vítimas

Após perder a mãe para a covid, Paola Falceta fundou associação de sobreviventes e familiares

 L.F.

Dez dias após perder a mãe para a covid-19, a assistente social Paola Falceta ligou para o amigo Gustavo Bernardes. Juntos, fundaram, em abril de 2021, a Associação de Vítimas e Familiares de Vítimas da Covid-19 (Avico Brasil), que oferece assistência psicológica, jurídica e social a sobreviventes da doença e parentes de quem morreu. "Meu luto foi luta desde o início", diz ela. Além de auxílio em reivindicações trabalhistas e previdenciárias, o grupo mira buscar na Justiça reparação pelo que vê como negligência do governo.

Paola acompanhou de perto a morte da mãe, Italira, de 81 anos. Ela, a irmã e o sobrinho foram infectados, mas tiveram sintomas brandos. Já o caso da idosa se complicou. Isolada no hospital, a mãe sentiu o baque. "Ela surtou. Ligava chorando e dizendo que nós tínhamos a abandonado", conta a assistente social, de 46 anos, que também é pesquisadora.

Paola reconhece o esforço da equipe médica, mas testemunhou as dificuldades de atendimento, diante da explosão de casos e da escassez de recursos na rede pública. Dez dias após a morte de Italira, em março, decidiu agir. "Sabia que muito mais gente ia morrer", relembra Paola, que responsabiliza o presidente Jair Bolsonaro e o governo federal pelo descontrole da pandemia.

Assim, ela ligou para Bernardes, que também sofreu na UTI com um quadro grave do coronavírus, em 2020. Em abril deste ano, nascia a Avico Brasil, com o objetivo de auxiliar as vítimas a conseguirem seus direitos. No início, a demanda era tanta que conseguiam dormir apenas de cinco a seis horas por noite. "Eu trabalhava chorando", diz Paola. Hoje, após quase seis meses, a entidade já conta com aproximadamente 1,4 mil voluntários.

A Avico presta orientação jurídica para sobreviventes e famílias que perderam entes para a doença, em processos trabalhistas e previdenciários, além de grupos terapêuticos sobre o luto. Também, em junho, entraram na Procuradoria-Geral da República (PGR) com representação criminal contra Bolsonaro, na qual pedem para que seja oferecida denúncia ao Supremo Tribunal Federal (STF).

No documento, os autores apontam, entre outras denúncias, que o presidente estimulou aglomerações, defendeu o tratamento precoce e sabotou a vacinação. Por isso, pedem que ele seja processado por crimes tipificados em cinco artigos do Código Penal. Desde junho, a representação está em análise na PGR.

A instituição, agora, tenta reunir provas para responsabilizar a União pelas mortes pela covid, na busca de indenização para famílias de vítimas. A Avico, que nasceu regional, também está em processo de criação de núcleos estaduais. Paola conta que, pelo fato de os atendimentos serem online, é difícil auxiliar populações vulneráveis periféricas. "Eu queria poder fazer mais", desabafa Paola.

Governo. Procurada para comentar as críticas sobre falhas na pandemia e possível responsabilização jurídica, a Secretaria de Comunicação do governo federal não comentou até 19h.