O Globo, n. 32724, 12/03/2023. Política, p. 4

Sugestão ignorada

Manoel Ventura


Dez meses depois de o então ministro de Minas e Energia Bento Albuquerque entrar no Brasil com joias oferecidas por autoridades da Arábia Saudita ao Estado brasileiro, o governo abandonou uma proposta de decreto que restringia que o chefe do Executivo pudesse levar consigo, ao deixar o governo, presentes diplomáticos recebidos durante o mandato. A iniciativa elaborada pela Casa Civil da Presidência estava pronta em agosto de 2022 e tinha como objetivo atender a uma decisão do Tribunal de Contas da União (TCU) que limitou os itens liberados a ficar com o presidente ao fim da gestão. Três meses depois, o ex- presidente Jair Bolsonaro recebeu as joias e, posteriormente, as incorporou ao seu arcervo privado, quando deixou o Palácio do Planalto. O documento, ao qual O GLOBO teve acesso, deixava claro que produtos recebidos “protocolarmente, em decorrência de relações diplomáticas vigentes” não poderiam ser incorporados ao acervo privado do presidente. Bolsonaro, entretanto, não assinou a proposta de decreto, condição necessária para que o texto entrasse em vigor.

A Polícia Federal instaurou um inquérito para investigar o destino dado às joias sauditas. As peças chegaram ao país em outubro de 2021 por meio de Albuquerque, escalado para representar em evento no exterior. Quando ele retornou ao Brasil, a Receita Federal confiscou um estojo de joias avaliadas em R$ 16,5 milhões. Elas estavam com um assessor de Albuquerque e não haviam sido declaradas. Esse pacote de joias permanece apreendido pela Receita Federal.

Na mesma ocasião, porém, o ministro conseguiu passar com outra caixa de joias, contendo relógio, anel, um par de abotoaduras, caneta, e uma espécie de rosário. Esse material foi entregue a Bolsonaro mais de um ano depois, em novembro de 2022. Em vez de repassá-lo ao acervo histórico da Presidência, o Bolsonaro incorporou aos seus bens pessoais. Não há estimativas públicas do valor desses artigos. O próprio Bolsonaro confirmou, em entrevista à CNN Brasil, ter ficado com esse pacote. O TCU deve mandar o presidente devolver o conjunto de joias. Uma servidora do governo Bolsonaro disse à PF que as joias retidas pela Receita também chegaram a ser incluídas no acervo pessoal do então presidente — mas elas permanecem em poder do governo.

O caso foi revelado pelo jornal O Estado de S. Paulo. A proposta de decreto que regulamentava o assunto, jamais publicado, tem data de agosto de 2022. Àquela altura, a operação dos assessores diretos de Bolsonaro para tentar reaver as joias apreendidas pelas Receita já estava em curso. A PF investiga se o material seria entregue à então primeira-dama, Michelle. O governo Lula avalia formas de colocar as joias no acervo público. Para isso, uma das saídas poderia ser reclassificar os bens como públicos, e não mais como item privado do ex-presidente. Para isso, porém, o Planalto vai esperar o andamento dos processos na Justiça e no TCU.

Patrimônio público

O texto do documento foi redigido pela Casa Civil de Bolsonaro . À época, a pasta estava sob o comando do hoje senador Ciro Nogueira (PP-PI). O decreto tinha como objetivo “melhor definir os bens que integram os acervos documentais privados dos s da República”, de acordo com o documento assinado pelo então subchefe de Assuntos Jurídicos da Presidência, Pedro de Souza. Procurados, Nogueira e Souza não responderam. O decreto foi gestado para atender a recomendações do TCU. O tribunal havia concluído uma investigação do paradeiro de presentes recebidos pelo presidente Lula em seus dois primeiros mandatos (entre 2003 e 2010) e pela ex-presidente Dilma Rousseff (de 2011 a 2016).

A Corte determinou que ambos devolvessem artigos recebidos como chefes de Estado. Para evitar a repetição do problema, recomendou, entre outros pontos, que a Casa Civil alterasse a legislação para deixar claro quais tipos de presentes poderiam ser levados após o término do mandato. Nota técnica anexada à proposta de decreto afirma ainda que, embora o acervo documental público possa ser constituído de bens e documentos recebidos pelo , eles pertencem ao Estado brasileiro, configurando patrimônio público. A minuta do decreto detalhava ainda que o titular do Palácio do Planalto não pode tomar para si presentes recebidos em eventos com chefes de Estado em agendas no exterior ou durante visitas dessas autoridades ao Brasil. A exceção seriam itens de natureza perecível ou “personalíssima”. O próprio TCU classifica como de natureza personalíssima peças de vestuário e perfumes, entre outros —e exclui joias dessa lista.

— Imagine-se, a propósito, a situação de um chefe de presentear o presidente da República do Brasil com uma grande esmeralda de valor inestimável, ou um quadro valioso. Não é razoável pretender que, a partir do título da cerimônia, os presentes, valiosos ou não, possam incorporar-se ao patrimônio privado do presidente da República, uma vez que ele os recebe nesta pública qualidade —disse à época o ministro do TCU Walton Alencar, relator daquele caso.