O Globo, n. 32724, 12/03/2023. Economia, p. 15

Direitos no papel, carteira em branco

Geralda Doca
Ana Flávia Pilar


Famílias que contam com empregadas domésticas todos os dias e profissionais dessa área com carteira assinada para se dedicar a uma única residência estão se tornando menos comuns. Com a perda de poder aquisitivo da classe média, que se viu mais em casa desde a pandemia e teve de assumir tarefas cotidianas, há menos vagas para trabalhadores domésticos em tempo integral. Muitos patrões preferem diaristas. A mudança transforma essas profissionais em autônomas, que podem muitas vezes ganhar mais trabalhando a cada dia numa casa diferente, mas ficam sem garantias sociais como previdência, auxíliodoença, licença-maternidade, férias, décimo terceiro, jornada diária de oito horas, seguro desemprego, acesso ao FGTS e indenização em caso de demissão sem justa causa. Esses direitos trabalhistas foram estendidos à categoria na emenda constitucional que ficou conhecida como PEC das Domésticas e completa dez anos no próximo mês.

Uma década depois, há menos trabalhadoras registradas, e protegê-las da informalidade segue um desafio. Só um em cada quatro trabalhadores domésticos —a grande maioria é de mulheres —tem carteira assinada. O engenheiro aposentado Eduardo Caetano, de 73 anos, nunca teve que se preocupar com afazeres domésticos. Até o início da pandemia, a família dele, de quatro pessoas, contava com uma empregada diariamente para manter a casa de dois andares em que viviam, no Rio, mas ele teve que dispensá-la em meio às restrições sanitárias. Em seguida, Caetano se separou e as filhas já adultas saíram de casa. Vivendo sozinho, descobriu que não precisava de auxiliar todos os dias. Investiu em eletrodomésticos e passou a ter uma diarista duas ou três vezes por semana. De vez em quando, também contrata uma cozinheira para abastecer a geladeira.

—Tenho máquina de lavar roupa, interruptores digitais e aquele robô aspirador, que anda sozinho. Quando passei a morar sozinho, percebi o valor do trabalho invisível que essas pessoas desempenham em casa —diz o engenheiro, que vê uma relação mais funcional com as profissionais agora.

— Faço transferências para elas por meio do banco, por segurança. É uma facilidade.

Opção para ganhar mais

Lena Morais, de 41 anos, trabalha como doméstica desde a adolescência. Chegou ao que uma minoria no ramo alcança: carteira assinada. Mas, há três anos, resolveu abrir mão dos direitos trabalhistas para aumentar a renda. Pediu demissão da residência onde ganhava R$ 1.400 para trabalhar oito horas por dia, de segunda a sexta, e virou diarista. Cobra diárias de R$ 200, acrescidas do gasto com transporte.

— Já recebi propostas de trabalho com carteira, mas escolhi ser autônoma para ganhar mais. Imagina ganhar um salário mínimo por mês, sendo que tiro quase esse valor por semana? Tem bastante gente buscando ser diarista —conta a moradora da Muzema, na Zona Oeste do Rio. Segundo dados da Pnad Contínua, do IBGE, o número de formalizados no serviço doméstico ficou em 1,46 milhão em 2022, acima apenas dos dois anos anteriores, quando houve maior impacto da pandemia. Em 2012, pouco antes de a PEC ser promulgada, eram 1,87 milhão de trabalhadores domésticos com carteira assinada, 28% mais que hoje. O melhor momento foi em 2016, com 1,99 milhão com carteira assinada.

Entre todos os empregados domésticos, aqueles com carteira eram 31,4% em 2012. No ano passado, eram 25,2%. A informalidade, que havia caído para 66,8% em 2016, ficou em 74,8% em 2022.

— A informalidade, que já dava sinais de aumento a partir de 2017, acabou se agravando com os efeitos da pandemia e está no patamar mais baixo —diz o economista Rogério Nagamine, especialista em Previdência, que também aponta queda na renda média do serviço doméstico. — Saiu de R$ 1.117 em 2018 para R$ 1.052 em 2022. Esse resultado é muito ruim.

‘Choque’ na pandemia

Marcelo Neri, pesquisador da FGV, também vê a pandemia como o principal “choque” para o aumento da informalidade no serviço doméstico, principalmente por causa das consequências econômicas:

— Com a queda na renda, as famílias foram obrigadas a cortar custos e passaram a substituir a empregada por diarista de até dois dias na semana. A informalidade no trabalho doméstico cresceu nas regiões mais ricas do país. No Sudeste subiu de 61,3% para 70% entre 2012 e 2022. No Sul, de 63,6% para 73,1% no período. Contudo, Norte e Nordeste ainda concentram as maiores taxas, acima de 80%. Os dados do IBGE mostram ainda que o número de vagas domésticas como um todo, incluindo registrados e informais, caiu de seis milhões em 2019 para 4,85 milhões em 2020.

No ano passado, subiu para 5,8 milhões, mas ainda abaixo dos números anteriores a 2019. Neri ressalta que, para quem conseguiu se manter registrado, a PEC foi positiva, garantindo benefícios como o da aposentadoria. Não foi o caso de Elizabeth Pereira, de 50 anos, que já teve carteira assinada em casa de família com salário de R$ 1.600. Hoje, ela é diarista, mas, diferentemente de Lena, não por opção. Não consegue encontrar outra vaga formal e tem dificuldades com a instabilidade de renda como autônoma.

— Cobro R$ 200 por diária, mas só tenho um cliente. No ano passado, cheguei até a fazer bico como cuidadora de idoso — conta Elizabeth, que vive em Queimados, na Baixada Fluminense, com o filho de 8 anos e paga as contas com uma pensão que passou a receber depois da morte do companheiro. Com renda instável, ela tem dificuldades de pagar o INSS como autônoma e gostaria de voltar a ter direitos trabalhistas como FGTS por medo do futuro, com a “idade chegando”: — Muitas preferem trabalhar de forma autônoma porque a diária é alta, mas acho que não pensam no amanhã. Se eu tiver carteira e for mandada embora, recebo. Lena diz se preparar para a aposentadoria pagando o INSS como autônoma, mas admite que já teve mês em que não sobrou dinheiro para contribuir para a Previdência. Presidente do Instituto Doméstica Legal, Mário Avelino avalia que é preciso prover educação financeira às diaristas para que elas possam se planejar financeiramente para a renda instável e não deixem de contribuir para o INSS:

— As diaristas podem se cadastrar como MEI (microempreendedor individual) para contribuir com 5% do salário mínimo, o que dá pouco mais do que R$ 60. Assim, elas têm todos os direitos previdenciários de uma contribuinte individual, que paga 11%.

Falta fiscalização

Para Avelino, uma década após a PEC das Domésticas, ainda é preciso aprimorar a legislação para incentivar a formalização da categoria. Hildete Pereira de Mello, economista e professora da UFF, acrescenta que a categoria de trabalhadores domésticos vai além das faxineiras e cozinheiras. Atualmente engloba, por exemplo, cuidadores de idosos, ocupação que deve ser mais demandada com o envelhecimento da população. Ana Diniz, coordenadora do Núcleo de Diversidade e Inclusão no Trabalho do Insper, avalia que, com a retomada de velhos hábitos no pós-pandemia, é possível que famílias voltem a contratar domésticas. Ela frisa que é preciso valorizar os avanços da PEC das Domésticas na garantia de direitos de mulheres que atuavam em condições mais precárias, a maioria delas negra:

— A existência de uma lei que exige regularização precisa de mecanismos de fiscalização —adverte.