O Globo, n. 32721, 09/03/2023. Política, p. 4

''Extravagância'' das joias

Manoel Ventura
Luísa Marzullo
Bruno Góes


Além de investigações já em andamento na Polícia Federal (PF), Controladoria-Geral da União (CGU) e Receita Federal, o Tribunal de Contas da União (TCU) também vai se debruçar sobre o episódio das joias presenteadas pelo governo da Arábia Saudita ao ex-presidente Jair Bolsonaro e sua mulher, Michelle Bolsonaro. O subprocurador-geral junto ao TCU, Lucas Furtado, acionou a Corte ontem pedindo apuração sobre o conjunto avaliado em R$ 16,5 milhões apreendido pelo Fisco e, como mostrou a colunista Malu Gaspar, apontou a “verdadeira extravagância” do caso. Já em relação ao segundo estojo, que está no acervo pessoal de Bolsonaro, ministros do TCU avaliam determinar a devolução, com base no entendimento de que bens dados por governos não são itens pessoais — especialistas ouvidos pelo GLOBO também põem em dúvida a tese da defesa do ex-presidente de que as joias configuram um presente de “caráter pessoal”.

Em ofício direcionado à presidência do TCU, o subprocurador afirmou que, caso haja a comprovação de que recursos públicos foram usados em benefício pessoal “restará evidente a sobreposição de interesses particulares ao interesse público”. Furtado afirma ainda que Bolsonaro foi eleito, em 2018, “defendendo, entre outras, as plataformas de austeridade e transparência pública”.

“Se o procedimento de quem gere recurso público é inadequado e resulta em evidente ineficácia administrativa, abre-se o caminho para aplicação das sanções legais cabíveis”, acrescentou Furtado, pedindo também a apuração da viagem de um sargento da Marinha para tentar reaver joias retidas, “em possível deturpação de interesse privado sob o interesse público”.

Em 26 de outubro de 2021, um assessor do então ministro Bento Albuquerque tentou entrar no país com um conjunto contendo um colar, anel, relógio e um par de brincos de diamante sem declarar ao Fisco. A informação foi publicada pelo Estado de S. Paulo, na última sexta-feira. O episódio envolveu várias tentativas subsequentes de liberar os itens na alfândega no Aeroporto de Guarulhos, em São Paulo, onde o material acabou apreendido por não ter sido devidamente declarado. Um segundo pacote — com relógio, caneta, abotoaduras, anel e um tipo de rosário — entrou no país na bagagem pessoal do ex-titular de Minas e Energia, ficou sob a guarda da pasta e foi entregue a Bolsonaro em 29 de novembro de 2022.

Pedido de devolução

Em entrevista à CNN, o expresidente afirmou que incorporou ao seu acervo privado o estojo: “Não teve nenhuma ilegalidade. Segui a lei, como sempre fiz”, disse, negando que tivesse conhecimento do conjunto destinado à esposa. “Eu não pedi, nem recebi esses outros presentes”, pontuou.

Ministros do TCU avaliam determinar que Bolsonaro devolva as joias. Essa determinação pode acontecer antes mesmo do fim do processo, considerando que já há um entendimento do tribunal de que bens dados por governos não são itens pessoais do presidente. Presentes oferecidos por cidadãos, empresas e entidades costumam permanecer com o ocupante do Planalto, o que não é o caso dos recebidos de governos.

Esse entendimento foi firmado num acórdão de 2016, quando o TCU mandou Lula e Dilma Rousseff devolverem presentes que eles ganharam quando estavam na chefia do Executivo. Naquela ocasião, o relator do caso, ministro Walton Alencar, deu como exemplo uma esmeralda como item que não poderia ficar com um presidente da República.

“Não é razoável pretender que, a partir do título da cerimônia, os presentes, valiosos ou não, possam incorporar-se ao patrimônio privado do Presidente da República, uma vez que ele os recebe nesta pública qualidade”, afirmou.

O relator do caso agora é o ministro Augusto Nardes, visto como aliado de Bolsonaro. Caso os fatos sejam confirmados, o subprocurador-geral junto ao TCU pede a responsabilização de toda a cadeia de envolvidos.

Na terça-feira, o advogado Frederico Wassef divulgou uma nota alegando que Bolsonaro agiu dentro da lei, declarando “os bens de caráter personalíssimo recebidos em viagens, não existindo qualquer irregularidade em suas condutas”. Além da manifestação do TCU, especialistas também divergem da tese:

— Personalíssimo é diretamente ligado à pessoa, não é algo que o presidente recebe enquanto chefe de Estado. Os presentes institucionais são dados ao país e, por isso, pertencem ao acervo do governo. O valor das joias é muito considerável e não poderia entrar nessa categoria, até pelo código de ética do funcionalismo público —afirma o advogado Thiago Varella, professor da PUC-Rio, citando ainda a norma que limita o recebimento de itens considerados “brindes”, ou seja, com valor até R$ 100.

A visão é reiterada pela especialista em Direito Civil Constitucional Roberta Toledo Barcellos, da Uerj.

— Especificamente sobre joias, o TCU disse que pedras preciosas dadas a chefes de Estado não são presentes pessoais, e sim patrimônio da União —diz.

Flávio: “é personalíssimo”

O argumento de que os presentes recebidos do regime saudita configuram bens de caráter “personalíssimo” também foi citado ontem pelo senador Flávio Bolsonaro (PL-RJ), filho do ex-presidente.

— Na minha opinião, (a caixa de joias) é personalíssima, independentemente do valor. O TCU está tendo esse entendimento agora. A Comissão de Ética falou que não tinha problema. Ele (Bolsonaro) foi seguindo o que foi sendo pedido. Não tem nenhum dolo da parte dele, de maldade, ou ato de corrupção — disse Flávio Bolsonaro ao GLOBO.