O Estado de São Paulo, n. 46696, 23/08/2021. Economia p.B2

 

Precatórios: manipulação contábil e calote

 

Claudio Adilson Gonçalez

 

Nunca gostei da expressão contabilidade criativa, muito em voga no governo Dilma, para apelidar a maquiagem na evolução da Dívida Líquida do Setor Público, mediante empréstimos concedidos pelo Tesouro aos bancos estatais, principalmente ao BNDES. Ser criativo é distinguir-se pela capacidade intelectual para criar e inovar, certamente o oposto do que havia na equipe econômica de então. Melhor seria chamar de contabilidade manipulada. Manipular, segundo o Dicionário Houaiss, é provocar alteração, tornar falso, adulterar.

É também o que Paulo Guedes pretende fazer com a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 23/21, que trata dos precatórios. Agora, além da manipulação contábil, há a agravante de, unilateralmente, postergar por até 9 anos o vencimento de uma dívida do Tesouro Nacional, reconhecida e transitada em julgado. O nome disso pode ser moratória, inadimplência ou calote. Deixo aos credores a escolha do termo mais apropriado.

Criar um fundo, cujo único quotista é a União, para registrar passivos do governo e vincular receitas futuras (e incertas) não passa de manipulação contábil. Vejam a semelhança com a situação de uma empresa em que a conta Títulos a Pagar estivesse crescendo muito e preocupando os credores. Chamado a resolver a questão, o contador daria a seguinte fórmula mágica: muda-se a classificação contábil, de Títulos a Pagar para, digamos, Outras Obrigações.

E é isso que a PEC quer fazer. As dívidas em precatórios, que passariam a ser escrituradas no tal Fundo de Liquidação dos Passivos da União, são um passivo do setor público, exatamente igual ao representado pelos títulos da dívida mobiliária emitidos pelo Tesouro Nacional. Mais transparente e sério seria honrar esses compromissos tempestivamente e emitir títulos da dívida mobiliária para financiar o desembolso. Claro, os credores não são tolos e não se deixarão enganar pelo contador. Aumentarão o prêmio de risco para financiar o governo. Além disso, Guedes não quis deixar dúvidas sobre o calote: “Devo, não nego, pago quando eu puder”.

Nossa legislação tributária é complexa e geradora de contenciosos. Antes da reforma de 2019, o mesmo ocorria com a previdência social. A gestão de contratos de obras, serviços e compras governamentais também é ineficiente e provoca muitas demandas contra o setor público. Aí está a fábrica de precatórios. Para reduzir a produção dessa danosa indústria são necessárias medidas estruturais, como a simplificação tributária e a melhora da qualidade da administração pública.

O montante do passivo contingente decorrente dessas demandas judiciais é oficialmente estimado pelo próprio Ministério da Economia, na Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO), daí causar estranheza a expressão do ministro de que havia sido atingido por um meteoro. Nos anexos da LDO/2022 consta a estimativa de que as perdas classificadas como prováveis, quando os processos que estavam em tramitação no final de 2020 forem julgados definitivamente, com decisões contrárias à União, alcançarão o montante de R$ 702 bilhões, em cinco anos. Já as perdas com as derrotas possíveis, mas não prováveis, chegariam à escabrosa cifra de R$ 1,3 trilhão, também em cinco anos.

Por certo, o crescimento dos compromissos com o pagamento de precatórios não se molda à regra do teto. Uma proposta bem simples seria estabelecer, por emenda constitucional, que estaria fora do teto o valor dos precatórios que excedesse o montante de 2020, atualizado pelo mesmo indexador que corrige o mencionado teto. Adicionalmente, é necessário reduzir o porcentual de 95% da relação despesas obrigatórias/despesas primárias, estabelecido na PEC emergencial, para tornar o acionamento dos gatilhos automáticos de contenção dos gastos públicos realidade antes da eclosão de nova crise fiscal. Só não vale manipulação contábil e calote.