O Estado de S. Paulo, n. 46659, 17/07/2021. Metrópole, p. A22

Escravizada recebe imóvel de indenização

Aline Reskalla


A empregada Madalena Gordiano diz que nunca esteve tão feliz. Subitamente transformada em símbolo da luta contra o trabalho escravo no Brasil, ela acabou de fechar, há três dias, um acordo com a família que a manteve por 38 anos em condições análogas à escravidão em sua residência, em Patos de Minas, cidade localizada na região do Alto Paranaíba, em Minas Gerais.

Pelo acerto, devidamente acompanhado por seus advogados, Madalenaá recebeu um apartamento na cidade – o mesmo em que viveu e trabalhou –, avaliado entre R$ 400 mil e R$ 600 mil. Além disso, terá direito a ficar com um carro no valor de R$ 70 mil. Tanto a casa como o veículo pertenciam à família de um professor da cidade, Dalton César Milagres Rigueira. Ele e sua mulher, Valdirene Rigueira, são réus num processo aberto ano passado pelo Ministério Público do Trabalho. O acordo não termina aí: prevê mais R$ 20 mil que serão destinados ao pagamento de impostos dos bens em questão.

Assim como Madalena, seus advogados, voluntários da Clínica de Enfrentamento ao Trabalho Escravo da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Uberlândia (UFU), consideraram o acordo satisfatório – embora estejam, no conjunto, muito abaixo do valor que haviam reivindicado à Justiça de R$ 2,2 milhões.

É uma vida inteiramente nova, mas Madalena já tem planos. Ao Estadão, ela adiantou que não pretende ficar com os bens. Seu plano é vendê-los para construir ou comprar uma casa – os detalhes ela decidirá aos poucos. Mas pretende seguir morando em Uberaba, onde atualmente mora com uma assistente social. "Vou vender o apartamento. Não vou morar lá não, porque tenho muita recordação ruim. Mas vou ter de entrar, olhar. Agora é meu, né?" – pondera.

As lembranças, ela admite, são difíceis de apagar. "Eles me maltratavam muito, não me deixavam fazer nada. Eu queria ir na missa e não podia, ou tinha de voltar depressa. Me davam muita bronca", recorda. 

Vida nova. Mas esse tempo de sofrimento, agora, ficou para trás. Quando atendeu ao telefonema da reportagem, Madalena começou dizendo que não poderia falar porque naquele momento estava indo para a academia. Mas em seguida começou a contar como tem sido a nova vida e sua relação ainda recente com a liberdade.

"Fui para a praia, entrei no mar, fizeram uma festinha de aniversário para mim, pequena, por causa da pandemia. E estou de cabelo novo", contou ela, rindo. "Estou feliz demais".

Há outras razões para essa alegria. Ela está pondo em prática antigos planos de voltar a estudar – está aprendendo Português e Matemática . Uma das certezas que tem sobre seu futuro é que, "trabalhar de doméstica, nunca mais". "Eu quero é estudar, virar enfermeira, ajudar a atender as pessoas", sonha. E, depois de viagem em que foi conhecer o mar de Paraty, já está se programando para o próximo destino: "O Rio de Janeiro é muito lindo, quero ir lá."

Sobre a família que a mantinha como escrava, diz que nunca mais se encontrou com eles. "Nem quero. De vez em quando eles aparecem em audiência. Custaram a fazer o acordo, o advogado deles não aceitava nada. E le também não", disse, referindo-se ao professor Dalton Rigueira e à sua mulher. A reportagem não conseguiu contato com os advogados do casal.

Resgatada. Madalena Gordiano foi resgatada, na própria casa, dia 27 de novembro do ano passado, por promotores do Ministério Público do Trabalho e por agentes da Polícia Federal em Patos de Minas. Morou todo esse tempo na casa dos patrões, jamais teve registro em carteira, nem salário mínimo garantido ou o descanso semanal remunerado.

"Não foi um acordo nada fácil. As audiências foram muito longas", relatou a advogada Márcia Leonora Santos Régis Orlandini, professora de Direito do Trabalho da Faculdade de Direito da UFU e coordenadora da Clínica de Enfrentamento ao Trabalho Escravo da universidade. "Reivindicamos tudo a que ela tinha direito, que somava esse valor de R$ 2 milhões, mas o acordo foi muito bem-vindo, ela queria resolver isso",

A vitória de Madalena foi resultado, na prática, de um mutirão "Todos os advogados que atuaram no caso são voluntários. Foi um esforço muito grande. Por mais que se tenha indignação, foi muito rápido o acordo, foram sete meses", afirma Márcia Orlandini. Segundo ela, durante o processo o MPT fez uma devassa no patrimônio da família Rigueira e não foram encontrados outros bens além dos citados no acordo.

A advogada informou também que um acordo foi fechado com cinco bancos nos quais os acusados fizeram empréstimos consignados em nome de Madalena, no valor estimado de R$ 50 mil. Todos esses empréstimos serão cancelados.

Maus tratos

"Eles me maltratavam muito, não me deixavam fazer nada. Eu queria ir à missa e não podia, ou tinha de voltar depressa. Me davam muita bronca."

Madalena Gordiano

Ex-doméstica em Patos de Minas