O Estado de São Paulo, n. 46686, 13/08/2021. Política p.A8

 

Líder do governo abre confronto com CPI da Covid


Ricardo Barros acusa comissão de afastar empresas de vacinas do País; deputado vai depor novamente, desta vez como convocado

Daniel Weterman

Julia Affonso

Matheus de Souza

 

Em um depoimento tumultuado, o líder do governo na Câmara, Ricardo Barros (Progressistas-PR), acusou ontem a Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) de afastar empresas que desejavam vender vacinas para o Brasil. A declaração causou forte reação dos senadores, que suspenderam a reunião por duas horas. Na volta, a cúpula da CPI decidiu encerrar a audiência e transformar Barros em convocado, e não mais convidado.

A mudança é um elemento importante para o novo depoimento. Como convocado, o deputado é obrigado a falar a verdade e pode sofrer sanções se mentir, como prisão em flagrante. A CPI informou que vai consultar o Supremo Tribunal Federal (STF) para entender quais medidas poderá tomar caso Barros, que tem imunidade parlamentar, insista em dizer o que senadores classificaram como "mentiras".

A sessão de ontem virou um bate-boca quando Barros disse que a CPI estava afastando empresas interessadas em vender vacinas para o Brasil. "Eu quero lembrar aos senhores senadores que o mundo inteiro quer comprar vacinas. E eu espero que esta CPI traga bons resultados para o Brasil, produza um efeito positivo para o Brasil, porque o negativo já produziu muito: afastou muitas empresas interessadas em vender vacina no Brasil", disse o deputado. "Em vez de vir se explicar, veio aqui para tentar desconstruir. Não vai desconstruir o trabalho da CPI", reagiu o presidente da comissão, Osmar Aziz (PSD-AM).

Barros, que foi ministro da Saúde entre 2016 e 2018, no governo de Michel Temer, partiu para o ataque e disse que não permitiria que a comissão construísse uma narrativa mentirosa para "enganar o Brasil".

O deputado foi chamado à CPI após ter o nome citado pelo deputado Luis Miranda (DEMDF) em depoimento no fim de junho. Miranda relatou ter informado ao presidente Jair Bolsonaro, em 20 de março, sobre um esquema de corrupção envolvendo a compra da vacina indiana Covaxin. Na conversa, Bolsonaro teria atribuído o "rolo" ao líder do governo na Câmara. À CPI, Barros disse não ter participado de negociação para a compra de imunizante.

O depoimento durou cerca de três horas e foi interrompido antes que o relator da comissão, Renan Calheiros (MDB-AL), encerrasse suas perguntas. Durante esse período, o líder do governo foi questionado sobre a negociação das vacinas Covaxin e CanSino, sobre a emenda apresentada por ele que tornou viável a compra do imunizante indiano e a relação com o empresário Francisco Maximiano. Barros negou ter apresentado a emenda para favorecer a Covaxin e disse não ter "relação pessoal" com Maximiano, empresário que intermediou o contrato do Ministério da Saúde para a compra da Covaxin. Ele afirmou ter encontrado o empresário apenas uma vez quando era ministro da Saúde.

"Não fiz emenda para a Covaxin. Eu não aceito o que o senhor está afirmando. É mentira", declarou Barros ao vice-presidente da CPI, Randolfe Rodrigues (Rede-AP). O líder do governo também disse não ter participado de nenhuma reunião com a empresa Belcher Farmacêutica para tratar do imunizante. A Belcher é ex-representante da CanSino. Afirmou, porém, que pode ter "buscado auxiliar" a empresa e "todos" os que o procuraram. O deputado confirmou que é amigo de um dos sócios da Belcher, Daniel Moleirinho Feio Ribeiro, e de seu pai, Francisco Feio Ribeiro Filho.

A Belcher, que tem sede em Maringá (PR), reduto eleitoral de Barros, e o Instituto Vital Brazil foram descredenciados pela CanSino para atuar como representantes do laboratório em junho. Com o fim da parceria, a Anvisa encerrou o pedido de uso emergencial da vacina.

Aos senadores o líder do governo também disse "lamentar" o fato de o Brasil não ter comprado vacinas com contratos na mira da CPI: Covaxin, Sputnik V e CanSino. "A CanSino descredenciou o representante no Brasil e não colocou outro lugar", disse Barros. "Mostra que não tem mais interesse em vender pro Brasil".

O ataque à CPI provocou críticas imediatas dos parlamentares. "Isso não é verdade", disse a senadora Simone Tebet (MDB-MS). "Aí não dá", afirmou o senador Humberto Costa (PT-PE). Aziz decidiu, então, suspender a reunião e avisou ao líder do governo que ele voltaria à comissão como convocado. "A CPI precisa respeitar as regras, eu tenho imunidade parlamentar", disse Barros.

 

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Ricardo Barros na CPI: só João Coragem nos ajuda a compreender

 

ANÁLISE: Mário Scheffer

 

“Os intolerantes, os que não sabem compreender, nem pensar, nem entender, vão festejar comigo”, protestou João Coragem contra a ganância, antes de destruir a golpes de martelo o diamante da discórdia.

O soberbo Tarcísio Meira, de quem o Brasil acaba de se despedir, deixou a cena antológica, criação de Janete Clair, exibida em 1970. Na CPI da Covid o passado irrompe no interior do presente, e a realidade insiste em parodiar a ficção. Na novela, o rival dos Irmãos Coragem era Pedro Barros, o chefe político arrogante, latifundiário e dono do comércio de diamantes local.

Outro Barros, um arcaísmo político da vida real, Ricardo arrepiou a audiência no seu depoimento, um dos mais aguardados da comissão de inquérito, que chega à sua 43.ª reunião pública.

“Luis Miranda faz teatro”, debochou do deputado que relatara ter ouvido Bolsonaro aproximar o nome do líder do governo na Câmara às irregularidades no caso da Covaxin.

O suposto envolvimento de Ricardo Barros seria, nas suas palavras, um “mal-entendido”.

Para a plateia, bem entendidas restaram suas posições em defesa da permanência do general Pazuello no Ministério da Saúde, da atuação de intermediadores nas compras de vacinas, e do pagamento antecipado do governo a fornecedores.

“Se vocês não querem entender como funciona, isso é um mercado selvagem”, arrogou, sem sustentar com provas as acusações que fez à Anvisa e à multinacional farmacêutica Sanofi.

No mercado civilizado de Barros, ele é amigo dos donos da Belcher, de Maringá, sua cidade natal, mas contrapôs a suspeita de ter auxiliado a empresa, que flertou com o governo de olho nas vacinas da chinesa CanSino.

Ele foi também o autor da emenda parlamentar que facilitava importação de vacinas da Índia, mas negou favorecimento à Precisa Medicamentos, representante da indiana Covaxin.

Mais complexa foi a justificativa para sua autorização, na condição de ministro da Saúde, do pagamento antecipado de R$ 20 milhões para medicamentos contra doenças raras. A beneficiada, a empresa Global, é do mesmo grupo da Precisa.

Após tumultos, escalados para arruinar os planos da cúpula da comissão, a sessão foi suspensa, assim que o conflito se tornou mais ácido. Barros imputou à CPI a subtração de vacinas da população, pois as investigações teriam afastado empresas interessadas em vender imunizantes ao Brasil.

Na sua exposição inicial, em ritmo um tanto nervoso, Ricardo Barros ensinou que “há dois tipos de políticos, os que querem servir à comunidade, e os que querem se servir da comunidade”. Embora tenha se colocado na primeira tipologia, é preciso advertir sobre sua fama de frasista, seu hábito de criar expressões de efeito contrário ao que pretende.

À frente da pasta da Saúde, de 2016 a 2018, sua principal realização foi, por meio de frases controversas, unir contra si qualquer grupo entendedor dos temas alvo de seus despautérios, como esses: “homens trabalham mais, por isso não acham tempo para cuidar da saúde”; “a maioria das pessoas chega ao posto de saúde com efeitos psicossomáticos”; “vamos parar de fingir que pagamos os médicos, e os médicos parar de fingir que trabalham”.

Um ex-ministro da Saúde foi à CPI da Covid sem ter nada a dizer sobre a pandemia.

Com quase nenhum conhecimento técnico sobre o SUS, sua falta de apreço pela saúde pública é coisa antiga. Um dos lances mais ousados do então ministro foi o afago às empresas de planos de saúde, que já compareceram a suas campanhas eleitorais. Não fosse a forte repercussão negativa, confabulado com a Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), Barros quase entregou às operadoras a liberação da venda de planos com drásticas restrições de cobertura e atendimento, que ele chamava de “acessíveis” ou “populares”.

Ricardo Barros é de uma categoria de políticos essencial para a compreensão do baixo compromisso do País com políticas públicas universais, com a saúde e a vida.

João Coragem estava certo. Só os que não sabem compreender vão festejar.

 

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Ameaças à sociedade civil saltam 256%, aponta estudo


Ao trazer novos números de monitoramento, hoje, Instituto Igarapé alerta para aumento da pressão sobre o 'espaço cívico'

 

Tulio Kruse

 

Entre janeiro e fevereiro de 2019, os dois primeiros meses do governo Jair Bolsonaro, o Palácio do Planalto discutia uma mudança nos critérios do repasse de verbas públicas a organizações não governamentais (ONGs). Foi a primeira vez que entidades da sociedade civil entraram em alerta para uma possível restrição à sua atividade. A ideia foi contornada após uma reunião do então ministro da Secretaria de Governo, Carlos Alberto dos Santos Cruz, com representantes de três ONGs.

Desde então, o trabalho de entidades independentes tem ficado mais difícil. Um monitoramento do Instituto Igarapé a ser divulgado hoje aponta que a sociedade civil tem sido alvo de ameaças cada vez mais frequentes. A entidade contabilizou 406 ataques à independência dos Poderes, a direitos civis e à liberdade de expressão entre abril e junho deste ano. No primeiro levantamento, entre outubro e dezembro de 2020, o instituo havia identificado 114 situações desse tipo, portanto houve um aumento de 256%.

O monitoramento é focado em ameaças ao chamado "espaço cívico" na sociedade. Segundo o instituto, são pressões para restringir a atuação de universidades, órgãos técnicos do governo, ONGs e da imprensa independente. Os casos compilados no levantamento incluem censura, intimidação e assédio contra profissionais, restrições de financiamento e campanhas de desinformação.

"Não existe democracia sem espaço cívico forte, sem atuação da sociedade civil", diz a cientista política Ilona Szabó, presidente do Igarapé. "Existiam pessoas no governo que, independentemente de posições, estavam abertas ao diálogo, e essas pessoas foram defenestradas", diz Ilona, usando como exemplo a demissão do general Santos Cruz.

As modalidades de ameaça ao espaço cívico vão do abuso de autoridade às campanhas oficiais de desinformação. Casos em que há oferta de privilégios em troca de apoio, por exemplo, são classificados como "cooptação". Nessa categoria estão propostas como o "pacote de bondades'' do presidente Jair Bolsonaro para policiais militares, que inclui medidas como facilidade de acesso a crédito imobiliário e uma nova lei orgânica que esvazia o poder dos governadores sobre as forças.

Outra categoria é o "jogo duro constitucional", que é o uso indevido de cargos públicos para forçar a interpretação de leis até o limite para beneficiar grupos políticos. São situações como as tentativas de adiar a instauração de comissões parlamentares de inquérito (CPIs) e a redução da transparência sobre os gastos públicos.

"O devido processo legal já é bastante lento por natureza, e em algumas instituições vemos que há pessoas em cargos-chave cooptadas, há um claro aparelhamento do Estado", diz a pesquisadora Renata Giannini.

O estudo também identificou um aumento da reação das instituições às ameaças. "Temos alguns antídotos, estamos testando, e acho que é um momento de inflexão", diz Ilona.

 

Intolerância

406 ataques

à independência dos Poderes, a direitos civis e à liberdade de expressão foram contabilizados pelo Igarapé entre abril e junho