O Globo, n. 32713, 01/03/2023. Política, p. 4

Devassa na receita

Geralda Doca
Gabriel Sabóia


A invasão e captura de dados sigilosos de políticos e autoridades por parte do chefe da inteligência da Receita Federal durante o governo de Jair Bolsonaro, Ricardo Pereira Feitosa, gerou reações de órgãos de fiscalização e do Congresso. Subprocurador-geral do Ministério Público junto ao Tribunal de Contas da União (TCU), Lucas Furtado entrará com uma representação na Corte e pedirá ao Ministério Público Federal (MPF) para investigar o caso. O GLOBO apurou que, caso seja provocado, o presidente do TCU, ministro Bruno Dantas, vai determinar a instauração de um procedimento para apurar a conduta do exchefe da Receita. No Parlamento, deputados governistas afirmam que a Comissão de Fiscalização e Controle, cuja presidência poderá ficar com o PT, deverá requerer informações sobre a violação.

Então chefe da inteligência da Receita, Ricardo Pereira Feitosa acessou e copiou dados fiscais sigilosos de opositores de Bolsonaro em 2019, primeiro ano de governo do ex-presidente. Um dos alvos foi Eduardo Gussem, à época procurador-geral de Justiça do Rio e responsável pelas investigações das chamadas rachadinhas envolvendo o hoje senador Flávio Bolsonaro (PL-RJ). O processo apurava as suspeitas de que o parlamentar, quando era deputado estadual no Rio, mantinha em seu gabinete um esquema de recolhimento de parte dos salários de seus funcionários. A denúncia, porém, foi arquivada posteriormente por irregularidades verificadas na ação. Também tiveram suas informações devassadas dois políticos que haviam acabado de romper com Jair Bolsonaro:

No caso da remessa ao MPF, caberá aos procuradores do órgão decidir se pedem ou não a abertura de um processo penal.

De acordo com os registros e depoimentos de pessoas ligadas ao caso, os acessos aconteceram nos dias 10, 16 e 18 de julho de 2019. À época das pesquisas, não havia qualquer investigação fiscal envolvendo os desafetos do ex-presidente que justificassem as investidas.

Por conta da movimentação, foi instaurada uma sindicância investigativa em março de 2020, que recomendou a abertura de um Processo Administrativo Disciplinar (PAD) para apurar o ocorrido. O processo pode culminar na demissão do servidor. O procedimento segue em tramitação e, segundo a Folha de S.Paulo, com a recomendação de demissão de Feitosa. O processo será analisado pelo ministro da Fazenda, Fernando Haddad. Atualmente Feitosa atua como auditor-fiscal da administração aduaneira da Receita em Cuiabá (MT).

Em nota, Ricardo Pereira Feitosa negou ter cometido qualquer violação, afirmando ainda que “não vazou dados sigilosos e que sempre atuou no estrito cumprimento do dever legal”. A defesa do servidor pontua também que “sua vida funcional sempre foi reconhecida pela seriedade, zelo, atenção ao interesse público e cumprimento estrito dos deveres legais, trabalhando no combate à prática de ilícitos tributários e exercendo seu poder-dever de atuar na inteligência fiscal”.

Reflexo no Congresso

O episódio tende a acirrar a batalha pelo comando da Comissão de Fiscalização e Controle, já que o colegiado pode requerer informações sobre o caso e, se houver maioria, convocar personagens envolvidos nele. Hoje, a presidência da comissão está sendo disputada pelo PT e pelo PL, partido de Bolsonaro.

A deputada petista Maria do Rosário (RS) argumenta que, caso a legenda do expresidente comande a comissão, o caso será abafado.

— O ideal é a Comissão de Fiscalização requerer dados à Receita e fazer uma representação diretamente no Ministério Público. É por isso que uma comissão dessa importância não pode ficar na mão dos bolsonaristas. Precisamos investigar tudo o que ocorreu no último governo, inclusive absurdos como esse —argumenta a parlamentar.

Outro deputado opositor ao antigo governo, Guilherme Boulos (PSOL-SP) afirmou que trata-se de mais uma investida irregular da antiga administração:

— É o mesmo governo que tratou o Exército como sua segurança pessoal para mudar as estruturas das Forças Armadas; que atacou a imprensa, as instituições e que não agiu de maneira eficaz durante a pandemia.

Histórico de ingerência na Receita

Porto de Itaguaí

Em agosto de 2019, José Paulo Ramos Fachada Martins da Silva, então subsecretário-geral da Receita Federal — espécie de número 2 do órgão —, foi exonerado em meio a pressões do Planalto pela troca do auditor responsável pelo Porto de Itaguaí, no Rio, situado numa região sob influência de milícias e ponto conhecido na rota do contrabando de armas e drogas.

‘Forças externas’

Dias antes da demissão de Martins da Silva, o auditor José Alex Nóbrega de Oliveira, que comandava há um ano e meio a alfândega do porto, publicou, em um grupo nas redes sociais, uma mensagem na qual afirmava que “forças externas que não coadunam com os objetivos de fiscalização o empresário Paulo Marinho, que é suplente de Flávio Bolsonaro, e o ex-ministro Gustavo Bebianno, que morreu em março de 2020. As violações foram reveladas pelo jornal Folha de da Receita Federal” estariam interessados em sua saída.

‘Fui eleito para interferir’

“Está interferindo? Ora, eu fui (eleito) presidente para interferir mesmo, se é isso que eles querem. Se é para ser um banana ou um poste dentro da Presidência, ‘tô’ fora”, disse Bolsonaro, enquanto polêmicas na Receita se enfileiravam. O ex-presidente também reclamou de uma suposta “devassa na vida financeira” de familiares.

Dívidas tributárias de igrejas

Em abril de 2020, durante uma reunião no Planalto com lideranças evangélicas e a Receita, Bolsonaro cobrou uma solução para as dívidas tributárias milionárias das igrejas. Ele deu ordens semelhantes outras vezes, com a recomendação expressa 

S.Paulo.

— Vou pedir para o TCU acompanhar o caso e verificar se, além de ilegal, houve dano ao erário. Também vou encaminhar um pedido ao Ministério Público Federal para de que o assunto fosse resolvido, mas o órgão resistiu.

Flávio e a Corregedoria

No fim de 2021, o secretário especial da Receita Federal, José Barroso Tostes Neto, deixou o governo. Embora tenha sido “a pedido”, para assumir um cargo no exterior, ele havia resistido a meses de pressão para que o nome preferido de Flávio Bolsonaro fosse escolhido para comandar a Corregedoria do órgão.

O caso das rachadinhas

Flávio já tinha dado cartas na Receita antes. Entre outubro de 2020 e fevereiro de 2021, cinco servidores foram escalados para apurar se dados fiscais do senador teriam sido repassados ilegalmente ao Coaf, dando origem ao caso das rachadinhas, que acabou arquivado.