O Globo, n. 32772, 29/04/2023. Economia, p. 19

Rotina de Assédio

Ana Flávia Pilar


Em 2011, A. teve vídeos íntimos compartilhados em e-mails corporativos de funcionários da Petrobras, quando trabalhava na Bacia de Campos. A técnica de segurança do trabalho, hoje com 42 anos, soube do vazamento por uma amiga, que ligou dizendo que ela aparecia em uma série de sites de conteúdo adulto. Depoimentos como esse, ouvidos pelo GLOBO, revelam que os casos de assédio sexual na Petrobras já acontecem há mais de uma década, e a cultura corporativa da empresa pouco mudou nos anos mais recentes.

Há relatos sobre funcionários homens que ligam de dentro da plataforma para as mulheres enquanto se masturbam, enviam mensagens de teor sexual nas redes sociais e tentam beijar à força trabalhadoras, além de constrangimentos no dia a dia, que configuram assédio moral.

As primeiras denúncias surgiram na imprensa quando o colunista Ancelmo Gois, do GLOBO, revelou mensagens enviadas por funcionárias da Petrobras em um grupo no WhatsApp. Algumas delas diziam que a Ouvidoria da estatal não toma medidas eficazes para coibir os abusos, limitando-se a transferir o assediador ou a vítima de setor.

Os relatos foram confirmados por oito pessoas ouvidas pela reportagem, entre funcionários e ex-empregados da Petrobras ou de terceirizadas, que descrevem um ambiente de trabalho hostil às mulheres.

Indenização e afastamento

A. conta que teve um caso com um dos gerentes da plataforma depois de semanas sendo pressionada por ele. Ela costumava “andar sozinha” durante o embarque, sem amigos, porque o chefe perseguia aqueles que se aproximavam.

O vazamento das imagens, gravadas em momentos privados do casal, aconteceu depois de uma inspeção no celular e computador corporativo do gerente. Ao Ministério Público, ele argumentou que o material foi compartilhado pelo técnico que realizou o procedimento.

Mesmo assim, a Justiça o condenou a pagar uma indenização. A funcionária também registrou uma denúncia contra a empresa terceirizada onde trabalhava, conforme apuração do GLOBO. Logo depois do episódio, A. foi afastada pelo INSS porque se sentia mal no ambiente de trabalho.

Ao retornar, o órgão determinou que ela teria um ano de estabilidade, mas a funcionária foi demitida em seis meses. Como a prestadora de serviços entrou em recuperação judicial, a ação mirou a Petrobras como responsável subsidiária.

Em agosto de 2019, o Ministério Público do Trabalho (MPT) determinou o pagamento de uma indenização. O trauma foi tanto que A. usou parte do dinheiro para começar outra carreira e está concluindo a faculdade de medicina, mais de dez anos depois:

— Passei a dormir de macacão e bota. Morria de medo de entrarem no meu quarto. Até para arrumar emprego depois foi difícil. Sempre tinha um que ouviu falar.

O caso de A. levou um colega de trabalho a registrar uma denúncia na Ouvidoria da empresa em 2016 com 33 arquivos anexados como prova. O órgão informou ter encaminhado a acusação para a “área responsável” e perguntou se havia testemunhas.

Propostas de aumento de salários

Em 2020, a mesma denúncia foi enviada ao MPT, que arquivou o caso porque já havia passado muito tempo. Agora, a denúncia voltou ao radar da Justiça e foi vinculada à investigação principal, tocada pelo MPT no Rio, que instaurou um Inquérito Civil para investigar as denúncias da mídia.

O denunciante contou ao GLOBO que ao menos quatro gerentes costumavam oferecer aumentos salariais para as funcionárias em troca de favores sexuais. A. confirma que mais de um deles tentou ter um relacionamento com ela e que os cargos eram usados como forma de atrair as mulheres.

Todas as trabalhadoras consultadas descrevem um ambiente de trabalho de abusos normalizados, principalmente de homens que ocupam cargos superiores a elas na hierarquia da empresa.

Mulheres são apenas 16,9% dos empregados

Segundo o último relatório da Petrobras, de 2021, as mulheres são apenas 16,9% entre os 38.694 empregados. A petroleira conta ainda com 92.401 trabalhadores terceirizados, dos quais 14% são mulheres.

— Meu gerente falou que não gosta de trabalhar com mulher. Você acha que ele está preparado para lidar com uma denúncia de assédio? Ele vai achar que o problema é a mulher — disse B., funcionária da Petrobras há 14 anos.

Em 2015, B. começou a ser perseguida na plataforma por um funcionário. Sempre que abria a porta do camarote (nome dado aos quartos), ele estava lá. Os dois nunca se falaram pessoalmente, mas o homem mandou várias mensagens no Facebook falando sobre sexo.

Ela respondeu que não queria contato e ameaçou fazer reproduções da tela para denunciar. Depois, teve medo e não procurou a Ouvidoria. A técnica em segurança do trabalho lembra que foi assediada pela primeira vez logo no seu primeiro embarque. De noite, estava sozinha no quarto e um homem telefonou gemendo.

 Ele ligava e eu sempre desligava. Mas, um dia, ele disse que eu estava sozinha e falou: “talvez eu te visite”. Passei a dormir com uma chave de fenda embaixo do travesseiro para me proteger.

C., que trabalha na empresa há onze anos, disse que teve medo na sua primeira noite embarcada porque não é permitido trancar a porta do camarote.

— Eu tranquei. Uma homarada me olhando daquele jeito, como se fossem caçadores na floresta — contou.

Tentativa de beijo à força

Anos mais tarde, C. se ofereceu para ser testemunha em um caso de assédio contra uma terceirizada na plataforma. Um mestre de cabotagem havia agarrado e tentado beijar a funcionária dentro da sala de segurança. Na hora, a mulher “deu um murro” nele e ameaçou denunciar. O homem respondeu que ela já “queria isso há muito tempo”.

— Ela pediu para nunca mais voltar. Esse mestre de cabotagem era um homem nojento, de comentários maliciosos. Ela não quis denunciar porque ele tinha muitos anos de empresa, mesmo que fosse terceirizado também.

Outro caso aconteceu com um coordenador de produção que colecionava denúncias de assédio moral na Ouvidoria, conta C. O camarote em que ele dormia ficava ao lado do feminino e as paredes eram finas. Toda noite o homem conversava com a amante sobre sexo, dizendo o que gostaria de fazer com ela na cama.

— Neste dia, ele estava bravo comigo e disse no telefone que mulheres que embarcam não têm, e diz o nome do órgão sexual, para “dar jeito nelas”. Minha colega de camarote disse que a gente “cairia” se denunciássemos, então ficou entre nós.

Vídeo pornô na refinaria

Paula de Carvalho Pego, de 43 anos, chegou na Petrobras em 2002 e diz que os problemas de assédio eram piores nessa época. Ela conta que os homens ficavam pelados na sala de controle e assistiam pornografia nos computadores da empresa.

— Eles achavam normal andar pelado. Eu chegava no trabalho e me perguntavam se eu transei muito na noite anterior, falavam da minha bunda abertamente. Tinha colegas folheando uma pilha de revistas pornográficas do meu lado. Cansei de ir na cabine de controle e alguém estar vendo pornô — contou a técnica de operações.

Em 2006, quando voltou da licença-maternidade, 15 homens a esperavam na entrada por conta de uma aposta para ver se ela tinha “embarangado” com a gravidez. Muitas vezes, Paula viu faxineiras serem agarradas no trabalho, com apertos na bunda.

Uma delas fez uma denúncia ao gerente depois que um homem entrou no banheiro em que limpava e colocou o pênis para fora. A funcionária foi demitida. Segundo os relatos ouvidos pela reportagem, as terceirizadas são as vítimas preferenciais, sobretudo quando trabalham na cozinha ou arrumando as unidades. Nas palavras de uma funcionária, quanto mais baixo na “cadeia alimentar”, mais elas sofrem.

Assédio moral

Todas as mulheres confirmam que o assédio moral é outro problema crônico na empresa. Paula trabalha na Refinaria Duque de Caxias (Reduc). Segundo a lei, deve haver um número mínimo de trabalhadores na unidade em cada turno. Caso falte alguém, uma pessoa do turno anterior continua trabalhando.

Assim que descobriu que poderia ter um câncer de mama, em 2011, Paula marcou todos os exames para o dia mais próximo, sempre fora do horário de trabalho.

— Avisei com antecedência que não poderia ficar no turno seguinte. Nós éramos dez e sempre eu dobrava. Isso aconteceu três vezes. Fui impedida pelo meu supervisor e pelo meu gerente. Tive que esperar meses para marcar cada consulta — contou.

Na última vez, ela tinha marcado o exame para as 14h. Como o seu expediente terminava às 15h, combinou de trocar com um colega que trabalhava no dia anterior. Mesmo assim, o gerente quis que ela trabalhasse na sua escala regular.

— O setor médico teve que me liberar. Descobri que era câncer e ele foi evoluindo ao longo desse tempo. No fim, fiz cinco cirurgias, retirei a mama direita e tive que fazer quimio e radioterapia. Meus colegas achavam que eu estava afastada por problemas mentais. A ficha só caiu quando fiquei careca.

Quando Paula retornou da licença médica, não tinha função definida. Foi alocada pela gerência em uma mesa que era usada para cafés da manhã e sequer tinha computador.

— Era uma angústia, eu era uma inútil. Não tinha computador e não fazia nada, por mais de um mês. Eu ia para o vestiário, chorava, chorava, me recuperava e voltava. Tinha a impressão de que eles queriam que eu chorasse.

Paula diz ser muito comum os gerentes ameaçarem transferir os funcionários para o regime administrativo, tirando o adicional de turno, que representa boa parte do salário. Ela também descobriu que outra funcionária foi filmada escondido enquanto tomava banho na unidade.