O Globo, n. 32771, 28/04/2023. Mundo, p. 18

Lula globetrotter

Marina Gonçalves


Na tentativa de recolocar o Brasil no cenário internacional após quatro anos de governo Bolsonaro, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva passou 18 dos 120 dias iniciais de seu mandato fora — foram quatro viagens por sete países. Mas suas declarações sobre a guerra na Ucrânia e contratempos internos acabaram muitas vezes atraindo mais os holofotes do que as dezenas de acordos fechados nas viagens. O complicado equilíbrio entre política interna e externa é um desafio para o presidente, além de suas falas improvisadas, analisam especialistas ouvidos pelo GLOBO. As mudanças no cenário internacional nos últimos 20 anos também podem atrapalhar o objetivo de Lula, assim como a entrada em cena de um novo ator, as redes sociais.

O presidente deu o pontapé inicial em sua agenda internacional ainda em janeiro, com uma passagem pela Argentina. Lá, ele se encontrou com seu colega, Alberto Fernández, e participou da cúpula da Comunidade dos Estados Latino-Americanos e Caribenhos (Celac), antes de fazer uma escala em Montevidéu. No mês seguinte, embarcou para três dias em Washington, com compromissos que incluíram um encontro com o presidente Joe Biden e o anúncio de apoio dos EUA ao Fundo Amazônia. Em março, passou cinco dias na China, onde assinou 15 acordos, a maioria comerciais e de cooperação, e deu declarações vistas como antagônicas a Washington em um momento de forte rivalidade entre as duas superpotências.

Estresse com EUA e Europa

Ao retornar, na passagem por Abu Dhabi, Lula voltou a ser alvo de críticas americanas e europeias após equiparar as responsabilidades de Moscou e Kiev na invasão russa da Ucrânia. Nos últimos dias, esteve em Portugal e Espanha, onde tentou estancar a crise após as declarações, com relativo sucesso. Em Portugal, assinou 13 acordos, entre eles de validação de grau escolar e habilitação, e aproveitou para entregar o Prêmio Camões a Chico Buarque —em 2019, o então presidente Jair Bolsonaro recusou-se a assinar a documentação para que o artista recebesse a mais prestigiosa horaria das literaturas em língua portuguesa.

— A imagem que o Lula criou há 20 anos em relação à presença dele e do Brasil na geopolítica mundial criou uma forte expectativa em relação a esse governo e de como Lula agora conduzirá sua política externa e firmará parcerias. Por isso, suas declarações sobre a Ucrânia colocaram em dúvida qual vai ser o papel do país, pelo menos por parte do Ocidente —explica Valentina Sader, especialista em Brasil e América Latina do Atlantic Council. —Apesar de ter tentado consertar suas falas, houve a interpretação de que tentou igualar as responsabilidades de Ucrânia e Rússia na guerra, e isso foi um problema.

Muita coisa mudou desde que Lula assumiu pela primeira vez o cargo de presidente do Brasil, em 2003, quando a política externa foi apresentada como uma das principais vitrines de seu governo. Em seus dois primeiros mandatos, o presidente brasileiro conseguiu, com bastante êxito, impulsionar processos de integração regional, como a Unasul, e exercer grande liderança em foros multilaterais ou regionalmente. Apenas em seu primeiro mandato, o chefe de Estado passou 13,2% do tempo em viagens ao exterior.

Fábio Borges, diretor do Instituto Latino-Americano de Economia Sociedade e Politica da Unila, explica que tanto o cenário interno como o externo são muitos mais difíceis e complexos que nos dois governos anteriores. As falas improvisadas do presidente, assim como algumas gafes, também ganham uma dimensão muito maior com as redes sociais.

— Do ponto de vista externo, vejo uma linha contínua aos dos governos anteriores, mas em um cenário muito mais desafiador. Individualmente, vejo uma certa dificuldade de entender que o cenário internacional é mais hostil, tanto pela pandemia quanto pela guerra da Ucrânia — afirma Borges. —Ainda assim, não vejo equívocos em sua posição quanto à guerra. Pelo contrário, o posicionamento de não se omitir e defender a paz é tradicional na nossa diplomacia. Sua aproximação com a China, que também gerou críticas por parte dos EUA, é normal em termos pragmáticos. O tamanho do comércio com a China é três vezes maior que com os EUA.

‘Falar aquilo que agrada’

Segundo Gustavo Poggio, professor do Departamento de Ciência Política do Berea College, em Kentucky, além da mudança do cenário geopolítico nos últimos 20 anos — que fez, por exemplo, a China passar de uma possível parceira comercial para uma rival estratégica do Ocidente — tornando certos temas mais difíceis de serem encarados, o contexto em que Lula se insere também exige uma atenção maior do presidente a certos novos fatores, que passaram a ser levados em consideração no jogo político.

— Lula sempre foi de falar aquilo que agrada a determinados públicos, mesmo que em alguns momentos fosse

contraditório. Temos que ver como isso vai se dar na era das redes sociais, porque esse contexto tecnológico deixa o cenário mais complexo. Teremos que ver por quanto tempo o Brasil consegue manter uma posição de ambiguidade, mais independente, ou se vai se alinhar a algum dos lados dessa disputa por protagonismo — disse.

Já Dawisson Belém Lopes, professor de Política Internacional da UFMG, crê que Lula vem adaptando sua política externa e cita como exemplo a ênfase na questão do meio ambiente e a transição para a economia verde, “que não tem nada a ver com o foco em combustíveis fósseis e pré-sal, e com o nacionalismo extrativista do início do século XXI”.

— Seguramente não é a mesma política exterior de 2003. Eu diria que o Brasil é mais arrojado e mais agressivo em algumas ações desde o início deste mandato.

Se o cenário externo é desafiador, internamente Lula ainda precisa lidar com um ambiente hostil, de radicalização, lembra Borges. Questões internas como a aprovação do arcabouço fiscal e a saída do ministro Gonçalves Dias do Gabinete de Segurança Institucional (GSI) respingaram nas viagens, onde Lula foi questionado sobre os temas em coletivas com jornalistas. O que é natural, avaliam os analistas. Sendo ao mesmo tempo chefe de Estado e de governo, Lula acaba sendo um fio condutor entre a política interna e externa.

Acordos em segundo plano

Os acordos assinados, no entanto, acabaram ficando em segundo plano na cobertura jornalística, interna e externamente. Mesmo assim, para o professor da Unila, há potencialidades para que uma política externa bem-sucedida traga bons resultados para a interna.

— Em geral, temas externos não são dominantes no debate público. Mas se Lula for bemsucedido em acordos que ajudam a consolidar a economia e gerar emprego, servirá para acalmar a política interna e gerar melhorias para a população — avalia. — Sua atuação também pode trazer de volta a confiança que o Brasil perdeu em questões como a ambiental, de responsabilidade fiscal e acordos de integração.

Apesar das declarações sobre a Ucrânia e de seus reflexos nos EUA e na Europa, que reagiram de maneira dura às falas do presidente, a especialista da Atlantic Council também é otimista ao avaliar essas primeiras turnês internacionais.

— Historicamente o país tem como princípio trabalhar com todos os atores, numa relação de beneficio mútuo, e foram assinados acordos importantes para o Brasil — avalia Sader.

— Agora, Lula precisará se envolver um pouco melhor em relação aos planos propostos para a Ucrânia.