Correio Braziliense, n. 21544, 12/03/2022. Mundo, p. 9

Boric inicia virada à esquerda



O mais jovem presidente eleito na história do Chile, Gabriel Boric, 35 anos, tomou posse, ontem, cercado de muita expectativa em relação aos novos rumos do país. Com maioria feminina nos principais cargos de comando — dos 24 ministérios, 14 serão chefiados por mulheres —, Boric enfrenta, a partir de hoje, o desafio de adequar o Chile a uma nova realidade constitucional e dar vazão às pressões da sociedade civil por uma revisão das políticas públicas voltadas ao atendimento da população, que empobreceu muito nos últimos anos. Uma das principais demandas é a mudança do modelo de aposentadoria que vigora no país.

Contendo a emoção na voz, o novo presidente chileno expressou um “grande senso de responsabilidade e dever com o povo”. O político de esquerda chega ao poder com uma retórica feminista, ecologista, de códigos moderados, em um país que busca um novo pacto social.

“Faremos o possível diante dos desafios que enfrentamos como país”, disse, em discurso, visivelmente emocionado, na conclusão da cerimônia de posse no Congresso do Chile, em Valparaíso, a 120km de Santiago.

Boric voltou à casa presidencial, em Cerro Castillo, de frente para o mar do Pacífico, onde a diplomata da Ilha de Páscoa, Manahi Pakarati, recebeu como diretora de Protocolo cada convidado do novo mandatário: os presidentes do Uruguai, Luis Lacalle Pou; da Argentina, Alberto Fernández; do Peru, Pedro Castillo; Rei Felipe VI da Espanha; Luis Arce, da Bolívia; e a ex-presidente brasileira Dilma Rousseff, além do candidato colombiano Gustavo Petro.

O governo brasileiro foi representado apenas na solenidade de posse, no Congresso, pelo vice-presidente Hamilton Mourão.

Boric tornou-se o presidente mais jovem do país, em um dos momentos mais desafiadores desde o fim da ditadura de 17 anos de Augusto Pinochet, em 1990.

O ex-líder estudantil se emocionou, contendo as lágrimas, ao receber a faixa presidencial de Piñera, empresário milionário de 72 anos, que encerra o segundo mandato (de 2010 a 2014, e de 2018 a 2022) como parte de um ciclo político que trouxe progresso graças a um modelo neoliberal, mas, também, uma grande lacuna na desigualdade social que motivou a onda de protestos em outubro de 2019.  

Após a cerimônia, os ministros prestaram juramento perante o presidente Boric, começando por Izkia Siches, médica de 35 anos, a primeira mulher a assumir a pasta do Interior.

Antineoliberal

Boric pretende iniciar uma trajetória para um Estado de bem-estar ao estilo da social-democracia europeia, para transformar o Chile neoliberal, em que 1% da população detém 26% da riqueza do país.

“Este é um governo que chega ao poder em um clima político muito fragmentado, que não tem maioria parlamentar e, portanto, não tem a possibilidade de fazer reformas muito radicais no curto prazo”, estima Claudia Heiss, acadêmica de Ciência Política da Universidade do Chile.

No entanto, “há esse otimismo que vem do processo constituinte e um impulso de superação do neoliberalismo, que é visto com menos medo até mesmo por setores conservadores, porque há uma espécie de sentimento antineoliberal no mundo”, avaliou ela.

O esquerdista assume o cargo em meio a uma crise de credibilidade na política, um corte de 22,5% nos gastos públicos, previsão de desaceleração da economia para este ano, grande migração irregular e um histórico conflito fundiário não resolvido entre o Estado e o povo mapuche.

Outro desafio será angariar apoio para o processo constitucional, que, neste ano, deve convocar um plebiscito para aprovar ou rejeitar uma nova Constituição que substitua a atual Carta Magna, herdada da ditadura de Augusto Pinochet.

Boric governará sem maiorias definidas no Senado e na Câmara dos Deputados. A coalizão considerada oficial do futuro governo de Boric, Apruebo Dignidad (Frente Ampla e Partido Comunista), somou 37 deputados, e a coalizão de esquerda Nueva Pacto Social (antiga Concertación) outros 37. A direita, agora na oposição, terá 53 cadeiras. No Senado, que renovou 27 das 50 cadeiras, a divisão está em meio a meio.