Correio Braziliense, n. 21621, 28/05/2022. Brasil, p. 6

Quando policiais se  tornam desumanos

Tainá Andrade


“Ele está melhor do que a gente aí dentro”, respondeu um dos policiais da Polícia Rodoviária Federal (PRF) aos apelos do sobrinho de Genivaldo de Jesus Santos, 38 anos, que estava preso em um carro com gás lacrimogêneo jogado pelos agentes.

A truculência dos integrantes da PRF, em atos e palavras, acendeu o debate sobre o preparo dos agentes da lei em operações de segurança. No dia da tragédia em Sergipe, a corporação afirmou que a vítima resistiu à abordagem e precisou ser contida, dando a entender que não houve problemas na operação policial.

Ontem, diante da repercussão do caso, a corporação voltou atrás e anunciou que “instaurou processo disciplinar para elucidar os fatos e os agentes envolvidos foram afastados das atividades de policiamento”. A atitude violenta dos policiais, culminando na morte de Genivaldo, trouxe à tona um problema grave: o desconhecimento dos profissionais de segurança em relação aos direitos humanos.  

Disciplina integrante no Curso de Formação Profissional (CFP) da Polícia Rodoviária Federal (PRF), obrigatório para todos os profissionais que ingressam na corporação, a matéria específica sobre Direitos Humanos foi lentamente extinta da base curricular dos agentes da corporação.

“A disciplina de Direitos Humanos e Integridade (DHI) teve a carga horária suprimida. Os encontros presenciais foram suprimidos e as temáticas abordadas em sala serão trabalhadas de maneira transversal por todas as demais disciplinas”, relataram, ao Correio, profissionais responsáveis pelo Projeto Pedagógico de Ação Educativa de 2022 da PRF.

Entre os integrantes da PRF, há uma percepção de que essa mudança começou a partir de 2018, com a ascensão de políticos como Jair Bolsonaro e Wilson Witzel, que defendem abertamente ações violentas da polícia. “Essa forma de compreender a segurança pública fez com que desaparecessem essas disciplinas. No curso de formação de 2021, todas juntas tiveram 22h aulas. Para 2022, a programação é de 0 horas aula”, detalhou um dos instrutores da PRF, que preferiu não ser identificado para não sofrer retaliações.

“Nas polícias, em geral, existem disciplinas de humanas no treinamento dos policiais. São temas como direitos humanos, abordagens a grupos vulneráveis, por exemplo. À medida que se reduz essa grade, há uma insensibilidade do policial a essas pautas, um desconhecimento de quais são as normas nacionais e internacionais sobre isso. Sai do curso sem saber como fazer”, completou a fonte.

Falta de protocolo

O perito do Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à tortura, Ribamar Araujo, ressalta que a cultura policial de justificativas violentas e de agressão, como a realizada com Genivaldo de Jesus, reforça a postura institucional. “Nós vemos que flagrantemente houve uma ausência do protocolo de força, coisa que a própria PRF já deveria ter assumido, e eles ainda tentaram se justificar, mas em nenhuma hipótese se justificaria ao que ficou consagrado o uso progressivo da força”, comenta.

“Eles tinham a pessoa sob sua custódia, ele estava se apresentando como alguém doente e apresentando a identificação, então era preciso outro procedimento e não aquele que foi utilizado. É possível ver a sucessão de erros cometidos na abordagem”, acrescenta Araujo.

“Eu falo com tristeza porque a PRF ainda é vista com excelência, e a gente assiste isso cotidianamente da Polícia Militar e da Polícia Civil  mas é lamentável que ainda tenha tido uma nota de justificativa por parte da corporação. Concretamente eles erraram”, comentou.

O Correio tentou contato com a Polícia Rodoviária Federal, mas não obteve sucesso.

*Estagiários sob a supervisão de Carlos Alexandre de Souza