O Estado de São Paulo, n. 46684, 11/08/2021. Política p.A4

 

Câmara derrota Bolsonaro e rejeita PEC do voto impresso

 

O plenário da Câmara dos Deputados rejeitou ontem a proposta de emenda à Constituição (PEC) do voto impresso, na maior derrota política do presidente Jair Bolsonaro desde o início do mandato, em 2019. Para que o texto fosse aprovado, o governo precisaria do apoio de no mínimo 308 deputados, mas só obteve 229 votos favoráveis. O placar registrou, ainda, 218 votos contrários e uma abstenção. A PEC se tornou pivô de uma crise entre os poderes depois que Bolsonaro passou a ameaçar as eleições de 2022 sob o falso argumento de que a urna eletrônica permite fraudes.

A derrota ocorreu no mesmo dia em que Bolsonaro foi o convidado de honra de um desfile que reuniu blindados na Praça dos Três Poderes e serviu para acirrar ainda mais os ânimos. Antes da votação, vários deputados de espectros ideológicos diferentes, da esquerda à direita, se reuniram com dirigentes de seus respectivos partidos e decidiram dar uma resposta “à altura” ao que classificaram como ameaça golpista e afronta ao Congresso.

Cinco dias após a comissão especial da Câmara ter derrubado a proposta, o plenário seguiu a mesma linha. O placar negativo contou até mesmo com o apoio de parlamentares da base governista e o Centrão rachou. Principal partido do bloco, o Progressistas de Lira e do ministro da Casa Civil, Ciro Nogueira, entregou 16 votos a favor da PEC e 13 contra. O PL, com Flávia Arruda na Secretaria de Governo, também se dividiu: 23 deputados foram contra a bandeira de Bolsonaro e 11 a favor.

O deputado Aécio Neves (PSDB-MG) foi o único que se absteve. Houve 64 faltas e muitas traições. Uma PEC só recebe sinal verde com aval de 308 deputados e 49 senadores, com dois turnos de votação em cada Casa.

Após uma sessão que durou mais de quatro horas, o presidente da Câmara, Arthur Lira (Progressistas-AL), agradeceu seus pares. “A democracia do plenário desta Casa deu uma resposta a este assunto. E na Câmara eu espero que este assunto esteja definitivamente enterrado”, afirmou ele, após o arquivamento da proposta.

Mesmo assim, Lira pregou a união entre os Poderes para encontrar uma alternativa. “É importante que haja bom senso, de agora em diante, por parte do Executivo e do Judiciário, para que todos nós possamos nos sentar e escolher uma maneira racional, clara e objetiva, de aumentarmos a transparência e a auditagem”, disse. O presidente da Câmara afirmou que dúvidas que ainda possam pairar “têm de ser respeitadas”.

Como mostrou o Estadão, mesmo com o revés o Palácio do Planalto avalia que ganhou o discurso do voto impresso porque semeou uma dúvida na cabeça de eleitores sobre a idoneidade das urnas eletrônicas.

O líder do governo na Câmara, Ricardo Barros (Progressistas-pr), chegou a articular uma emenda para modificar o texto e fazer com que apenas uma porcentagem de 2% das urnas fosse alterada para imprimir o voto. O acordo não obteve sucesso, mas Lira deu sinais de que a conversa pode ser retomada com o TSE e o Supremo. Na semana passada, o presidente do Supremo, Luiz Fux, cancelou a reunião entre os chefes dos Poderes por causa dos insultos desferidos por Bolsonaro contra os magistrados e a Justiça Eleitoral.

Em termos numéricos, o pior revés sofrido pelo governo até hoje foi em 23 de março, na votação de um projeto de lei complementar que liberava concursos na Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares e em universidades federais. Embora a liderança do governo tenha votado “não”, 436 deputados votaram a favor da proposta e apenas 30 contra.

 

Crise. A derrota na PEC do voto impresso, porém, tem um alto custo político. A proposta foi objeto de uma crise institucional provocada por Bolsonaro, que aumentou os ataques contra o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) e o Supremo Tribunal Federal (STF). Nos últimos dias, Bolsonaro xingou o presidente do TSE Luis Roberto Barroso, de “filho da p...” por sua posição contrária ao voto impresso e afirmou que a “hora” do ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF), ia chegar. A pedido do TSE, Moraes incluiu Bolsonaro no inquérito das fake news.

Até agora o presidente tem dito que não aceitará o resultado das eleições sem mudanças no sistema eleitoral. A leitura política é a de que Bolsonaro está criando a narrativa para se precaver, caso seja derrotado na eleição de 2022. Atualmente, seu maior adversário é o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que lidera as pesquisas de intenção de voto.

“É um processo de desacreditar as eleições futuras. Se o Lula ganhar as eleições, terá sido fraude. Não é elemento técnico; é político. Quer construir um tumulto impresso”, ironizou Alice Portugal (PCDOB-BA)

O Estadão apurou que, nos bastidores, o próprio Lira se mobilizou para garantir o enterro da PEC. O presidente da Câmara avaliou que era preciso tirar esse assunto de cena para votar outras propostas importantes, como a da reforma tributária.

Lira não compareceu ontem ao desfile bélico que passou pela Esplanada, mas a maior ausência foi a do vice-presidente Hamilton Mourão (Mais informações na pág.a8). Sob pretexto de entregar um convite a Bolsonaro para manobras militares que serão realizadas no próximo dia 16, em Formosa, o desfile bélico que passou pelos arredores do Congresso foi visto até por aliados como uma tentativa de Bolsonaro de demonstrar poder.

De autoria da deputada bolsonarista Bia Kicis (PSL-DF), a PEC rejeitada instituía um mecanismo para que todas as urnas eletrônicas do País passassem a imprimir o registro do voto e acabou se transformando em um cabo de guerra. “Mas é um tema que parcela da sociedade incorporou”, destacou Filipe Barros (PSL-SP), relator do texto na comissão especial. /VINICIUS VALFRÉ, LAURIBERTO POMPEU, ANDRÉ SHALDERS, CAMILA TURTELLI e ANNE WARTH

 

__________________________________________________________________________________________________________________

 

 

Dia de constrangimentos

 

ANÁLISE: Carlos Melo

 

O desfile de blindados promovido pelo ministro da Defesa e pelo presidente da República, mais que fuligem, deixou no ar o sentimento de tristeza e impotência. Num clima de águas malparadas, o País mora no impasse. Quando isso ocorre, o vencedor é sempre o constrangimento. E o dia foi de muitos constrangimentos: da sociedade, da economia, dos poderes e até dos militares – as Forças Armadas do Brasil mereciam outro destino.

O vexame democrático e institucional é inegável e não tem como voltar atrás. Agosto é mesmo mês de desgosto e são quase três anos de “agostos”. A repercussão internacional dos tanques envelhecidos, enchendo a Praça dos Três Poderes de fumaça, foi péssima. Essa desinteligência retrai investimentos, afeta a economia, reduz qualquer esperança. Empresários e operadores de mercado já se dão conta de que, desse modo, o Brasil não irá longe.

A índole autoritária do presidente é superlativa. Mas não resulta em vitórias claras. O desfile militar no dia da votação da PEC do voto impresso foi um tiro no pé, pois deixou claro que se trata de governo sem direção estratégica, forjado na truculência e no improviso. Foi assim a tentativa de pressionar o Congresso. Nas últimas horas, a intimidação vinha por meio de pastores, ministros, verbas e redes bolsonaristas. Sendo a derrota inevitável, para Bolsonaro era importante não levar goleada. No papel de vítima de complô, poderia se agarrar à retórica da fraude eleitoral. É seu refúgio. No entanto, das redes sociais brotaram memes de sarcasmo: sabe-se que do abismo e do ridículo não há volta.

Assim, a Câmara votou dividida entre deputados afirmativos, revoltados, constrangidos, oportunistas e pusilânimes. O placar não foi avassalador. Impassível, o constrangimento segue sua trajetória. Pressões sobre os poderes e a sociedade seguirão em desfile, é da natureza de Jair Bolsonaro e seus seguidores. Resta o silêncio apreensivo.