O Estado de São Paulo, n. 46676, 03/08/2021. Política p.A4

 

Bolsonaro dá mais verbas, mas aprova menos projetos

 

André Shalders

A mudança radical na articulação política do Palácio do Planalto indica que a entrada de Ciro Nogueira (Progressistaspi) na Casa Civil teve motivos bastante pragmáticos, na tentativa de assegurar a sobrevivência política do presidente Jair Bolsonaro. Levantamento do Estadão mostra que não faltaram razões para a troca do general Luiz Eduardo Ramos por Nogueira, senador pelo Piauí e líder do Centrão. Desde 2003, Bolsonaro é o presidente que mais pagou emendas para deputados e senadores – R$ 41,1 bilhões até agora –, ao mesmo tempo que seu governo foi o que menos aprovou propostas no Congresso.

Entre projetos de lei, medidas provisórias e emendas à Constituição (PECS), Bolsonaro conseguiu aprovar 83 propostas desde o primeiro ano do seu mandato, em 2019. É como se tivesse recebido sinal verde para um projeto a cada 11,3 dias no Congresso. Michel Temer (MDB) aprovou uma proposta a cada 9,6 dias, em média. Conhecida pela falta de habilidade no trato com os parlamentares, Dilma Rousseff (PT) registrou marca ligeiramente melhor no segundo mandato, marcado pelo processo de impeachment: uma média de um projeto a cada 11,2 dias.

Os números mostram como os congressistas vêm ampliando seu controle sobre o Orçamento da União. O processo começou antes de Bolsonaro, mas acelerou no governo atual com a utilização das chamadas emendas de relator-geral, identificadas com o código RP9. Estas emendas se tornaram uma forma de o governo liberar recursos para aliados, de acordo com a conveniência do Palácio do Planalto e sem qualquer transparência. O caso, revelado pelo Estadão, ficou conhecido como orçamento secreto.

A modalidade RP9 resultou em pagamentos de R$ 8,34 bilhões em emendas apresentadas em 2020 e R$ 4,51 bilhões em 2021, puxando para cima o “custo” da relação de Bolsonaro com o Congresso. E também fez com que 2020 – ano da pandemia e de forte crise econômica – se tornasse o exercício com o maior valor pago em emendas desde 2003: foram R$ 22,6 bilhões. A maior parte do dinheiro é direcionada para melhorias nos redutos dos congressistas.

 

‘Custo’. Desde o começo do governo, é como se cada um dos 83 projetos aprovados por Bolsonaro tivesse “custado” R$ 495,2 milhões – embora não seja possível correlacionar diretamente a aprovação de projetos específicos ao pagamento de emendas. O valor é mais que o dobro registrado pelo segundo colocado, Temer (R$ 192 milhões).

Apesar de ter trocado o comando da articulação política, nada indica que Bolsonaro pretenda interromper o uso das emendas RP9 para conquistar a boa vontade do Congresso. Ao contrário: o número 2 de Nogueira na Casa Civil será o engenheiro Jonathas Assunção Salvador Nery de Castro. Antigo secretário executivo de Ramos, Castro coordenou a liberação das emendas RP9 em 2020.

Para a especialista em política legislativa Beatriz Rey, a comparação do “custo” em emendas de cada projeto aprovado dá indícios de como o processo político se desenrola. “Essa discrepância no ‘custo por projeto’ é decorrente da incompetência do governo em gerir a coalizão (no Congresso). Um valor tão alto mostra que Bolsonaro teve muita dificuldade em montar uma coalizão estável, e se viu forçado a encontrar outras moedas de troca”, disse Beatriz, que é pesquisadora da Universidade Johns Hopkins (EUA).

 

‘Esforço’. “Bolsonaro é o presidente, do ponto de vista da aprovação legislativa, com a pior relação com o Congresso. No entanto, o fato de ele não ter sofrido impeachment até o momento é também porque ele está fazendo esforços que Dilma não fez”, afirmou o cientista político da FGV Sérgio Praça.

Em junho, o Estadão mostrou que deputados contemplados com verba do orçamento secreto votaram com o governo em 87,6% das ocasiões em 2020 – o mesmo grupo de congressistas não era tão fiel em 2019, quando a distribuição de recursos ainda não acontecia: naquele ano, eles votaram com o governo 54,1% das vezes.

Para o fundador da Contas Abertas, o economista Gil Castello Branco, o custo do apoio parlamentar de Bolsonaro cresce conforme a popularidade do presidente cai. “O novo mecanismo (emendas de relator) é pior que os anteriores, visto que, nas emendas tradicionais, os patrocinadores eram conhecidos. No esquema atual, os parlamentares favorecidos são escolhidos a dedo, sem qualquer critério republicano.”

Procurado por meio da Secretaria de Comunicação, o governo não respondeu.

 

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O preço de ser minoria

 

ANÁLISE: Carlos Pereira

 

É esperado que, quanto maiores os custos de um presidente no Legislativo, maior seria apoio dos legisladores aos interesses do presidente no Congresso. Entretanto, como mostrei com Frederico Bertholini no artigo Pagando o preço de governar: custo de gerência de coalizão no presidencialismo brasileiro, parece não existir relação entre maiores custos de governabilidade e apoio legislativo. O estudo mostrou que, em diversos momentos, mesmo com grande "investimento", seja pela criação de ministérios, seja pela execução de emendas ou por maiores desembolsos dos ministérios, presidentes tiveram pouco apoio legislativo às suas iniciativas. O inverso também é verdadeiro. Presidentes podem ser bem-sucedidos na aprovação de sua agenda no Congresso a um custo relativamente muito baixo.

O governo Bolsonaro, ícone do "gastador ineficiente", seria, portanto, um bom exemplo desse paradoxo. Os custos de governabilidade estão diretamente relacionados às escolhas de como o presidente se relaciona com o Congresso e, especialmente, gerencia sua coalizão. Ao associar presidencialismo de coalizão à corrupção, Bolsonaro rejeitou a necessidade de montar a sua no início do governo, quando teria poder de barganha. Iludiu-se que poderia governar nadando contra a corrente, negligenciando a política tradicional, os partidos e o Legislativo.

Diante de derrotas sucessivas no Parlamento e riscos crescentes de ver seu mandato abreviado por pedidos de impeachment, o presidente decidiu se aproximar dos partidos do chamado Centrão. Montou uma coalizão minoritária em troca de sobrevivência. Entretanto, essa aproximação se deu em condições de vulnerabilidade, com sua popularidade em baixa. Nessas condições, Bolsonaro tem poucas ferramentas para evitar que o preço do apoio legislativo seja inflacionado.