O Estado de São Paulo, n. 46675, 02/08/2021. Política p.A11

 

Bolsonaro deve ter punição por kit covid, diz senador


Alencar vê infração de medida sanitária preventiva; estudo aponta presidente como líder do discurso pró-cloroquina nas redes sociais

Breno Pires 

 

O senador Otto Alencar (PSD-BA), integrante da CPI da Covid, cobrou ontem a responsabilização do presidente Jair Bolsonaro pelo apoio do tratamento precoce ao longo da pandemia. A cloroquina e outros remédios defendidos pelo presidente não têm respaldo científico contra o novo coronavírus. O parlamentar se manifestou após o Estadão mostrar anteontem, com base em estudo da consultoria LLYC, que Bolsonaro foi o principal influenciador no apoio ao kit covid nas redes sociais no primeiro ano da crise sanitária.

A LLYC rastreou cerca de 20 milhões de menções a cloroquina, hidroxicloroquina e ivermectina na rede social Twitter. No total, 1,85 milhão de contas foram analisadas. Com um algoritmo, foi possível organizar os perfis de acordo com a posição sobre o tratamento precoce: neutro, favorável e contrário.

No estudo, Bolsonaro é o principal influenciador sobre o assunto na plataforma no primeiro mês após o início da quarentena, de março a abril, e depois entre agosto e o fim de 2020. Alguns dos picos de menções ao assunto também estão ligados ao presidente – como em julho, quando ele divulgou ter se infectado e adotado o tratamento com hidroxicloroquina.

Para Alencar, as evidências poderão servir de base para a responsabilização de Bolsonaro por infração de medida sanitária preventiva, crime previsto no artigo 268 do Código Penal. "Ele não é médico, não tem formação na área de saúde e não tinha como estar receitando hirdoxicolorquina ou qualquer outro medicamento", afirmou o senador ao Estadão ontem. A CPI retoma os trabalhos nesta semana.

"O Bolsonaro foi convencido por daquele gabinete paralelo e outros conselheiros não médicos de que a hidroxicloroquina funcionava, o que é absurdo.

Ele defendeu isso e não quis recuar disso. Até hoje seus seguidores radicais acreditam nisso. Todos estudos foram feitos e a hirdoxicloroquina não tem eficácia", disse. A Organização Mundial da Saúde (OMS) também já se posicionou contrária ao uso desse medicamento.

O "gabinete paralelo" é o nome dado a um grupo de assessores e especialistas formado no governo para orientar o presidente sobre o enfrentamento da crise sanitária e que seria responsável pela insistência no uso da cloroquina contra a doença. Apontado como um dos líderes desse comitê, o exassessor especial da Presidência Arthur Weintraub é outro citado no estudo da LLYC.

Ele – irmão do ex-ministro da Educação Abraham Weintraub – aparece em segundo entre os maiores influenciadores em mais de uma fase da pandemia, conforme o estudo da LLYC. Ele confirma ter indicado a cloroquina, mas nega o "gabinete paralelo". O Estadão procurou na semana passada a Secretaria Especial de Comunicação, do governo federal, e Weintraub para comentar o estudo, mas não obteve resposta.

 

Mortes. "Sem dúvida, uma cota das 550 mil mortes por covid foi em função disso (defesa do tratamento precoce) e de aglomerações, do não uso da máscara, da falta de comprar vacinas no ano passado", afirmou Alencar.

O senador Alessandro Vieira (Cidadania-SE), suplente na CPI, também concorda que a desinformação é parte importante do momento que o País vive. "A desinformação é uma parte relevante da tragédia que vivemos. A CPI e a vacina têm contribuído para impedir essa desinformação", afirmou ontem.

 

_______________________________________________________________________________________________________________________

 

Usuários que agem como robôs desafiam debate nas redes

 

Emílio Sant'anna

 

A replicação de mensagens em massa nas redes sociais desafia autoridades e as próprias plataformas, como na batalha virtual da cloroquina, ao longo da pandemia revelada pelo Estadão ontem. O uso de robôs preocupa, mas especialistas alertam para um desafio ainda maior: usuários reais que agem como robôs e repassam conteúdo de modo quase automatizado, muitas vezes seguindo influenciadores.

A análise de 20 milhões de menções a tratamento precoce no Twitter feita pela LLYC identificou cerca de 10% das contas que podem ser consideradas de comportamento automatizado, de um total de 1,85 milhão. Especialistas veem nessa situação indícios do uso de robôs.

Especialista da USP em debate digital, Pablo Ortellado lembra que estudo recente conduzido por ele aponta cerca de 50% mais robôs no campo bolsonarista do que na oposição. Mas vê no engajamento a explicação mais forte para a adesão ao discurso pró-cloroquina.

A complexidade em rastrear robôs vai além da tecnologia. “Temos militantes que agem exatamente como robôs. Dezenas de milhares de pessoas. Seguem ordens”, diz. “É difícil separar comportamento humano militante de um robô que se disfarça de humano. A empresa tenta, mas não consegue.”

Para Patrícia Blanco, do Instituto Palavra Aberta, de educação midiática, a crença ou ideologia às vezes impede reflexão crítica do usuário. “Entra num patamar que transcende a educação, em que ele não se importa se aquilo é verdade ou não.”

Para especialistas, a polarização, o uso de robôs e o comportamento de replicar mensagens em massa indicam desafios para a eleição de 2022 – tema que já ganha as redes com a defesa do presidente Jair Bolsonaro pelo voto impresso – e a necessidade de atuação das plataformas.

Em nota, o Twitter informou não emitir conclusões específicas, por não ter acesso à íntegra do estudo da LLYC. A empresa disse ter detecção proativa de conteúdos que violem regras ou de comportamentos suspeitos de “automação maliciosa”, além de alertas de usuários. Há um procedimento para checar (desafio) se existe alguém por trás da conta e tomar medidas.

Afirmou que estudos que identificam robôs feitos por terceiros podem ter falhas metodológicas e levar a falsos resultados. De março de 2020 até julho de 2021, 11,7 milhões de contas foram desafiadas, 1.496 perfis suspensos e mais de 43.010 conteúdos foram removidos no mundo. Sobre a eleição, o Twitter disse que sua política global para o tema foi revista em 2020.

 

Fake news. Estudo do Center for Counter Digital Hate (EUA) descobriu que só 12 pessoas são responsáveis pela maior parte das fake news e informações distorcidas sobre vacinas anticovid em três das principais redes sociais. Esses 12 produzem 65% das ações de desinformação sobre o tema nas plataformas.

 

_______________________________________________________________________________________________________________________

 

Nem tudo que reluz na internet é ouro; falta antídoto contra latões

 

ANÁLISE: Eliane Cantanhêde

 

A internet veio para ficar e se transformou numa imensa e sofisticada ferramenta de difusão de informações, mas... nem toda informação que reluz é ouro e muito latão está sendo usado contra o bolso, a saúde, a vida e a própria democracia. Ou seja, contra você.

Todo cuidado é pouco, particularmente quando as fake news (o falso ouro) são apoiadas, disseminadas ou até mesmo criadas dentro de estruturas de poder, como governos e partidos. O efeito é sempre deletério, mas se torna avassalador durante as eleições, com a manipulação política de corações e mentes para implodir a democracia.

Documentários assustadores mostram o quanto a prática adultera e define eleições, como Privacidade Hackeada, sobre a vitória do improvável Donald Trump nos EUA e a criação de regimes autoritários no mundo, e O Dilema das Redes, com quem testemunhou, por dentro, a máquina de ataque aos direitos, à liberdade e à humanidade.

Nas eleições do Brasil em 2022, é fundamental estudar o uso das redes para difundir o negacionismo do presidente Jair Bolsonaro na pandemia a fim de criar antídotos contra os métodos e evitar o mesmo efeito no resultado das urnas. E o aprendizado vale para ele e para seus adversários.

Se o principal líder da Nação combate o isolamento social, as vacinas e até as máscaras para massificar o uso da cloroquina, esse "comando de cima" se espalha feito erva daninha pelas redes sociais e atinge, principalmente, os municípios em que ele venceu em 2018. Quanto mais votos, mais adesão – irracional, diga-se – às orientações anticientíficas. O custo é em vidas.

Na política e nas eleições, a internet confere uma dinâmica frenética à máxima nazista de que "uma mentira repetida muitas vezes vira verdade". É assim que se criam artificialmente, para consumo eleitoral, personagens que nada têm a ver com o passado, a história real e o caráter dos candidatos. É o império das fake news. É preciso reagir, enquanto é tempo.