O Globo, n. 32762, 19/04/2023. Opinião, p. 2

Arcabouço fiscal é insuficiente para zerar déficit



O Projeto de Lei Complementar com o novo arcabouço fiscal encerra meses de suspense em torno do formato preciso das regras que o governo propõe para doravante reger a disciplina das contas públicas. O fim da expectativa e da ansiedade em torno do substituto do teto de gastos marca, porém, apenas o início dos desafios para o presidente Luiz Inácio Lula da Silva e seu ministro da Fazenda, Fernando Haddad.

O primeiro e mais óbvio desafio é político. Lula não tem maioria sólida no Congresso, é refém de negociações com políticos do Centrão e precisa convencer o próprio PT e seus aliados de esquerda da necessidade de disciplina fiscal para a economia brasileira recobrar o rumo do crescimento. Houve boa vontade do mercado financeiro e de lideranças partidárias com as ideias apresentadas, mesmo assim a negociação para valer começa agora. Será afetada pelo segundo desafio, nada óbvio: fazer as regras funcionarem.

Enquanto o teto de gastos é uma regra simples, que pode ser explicada em poucas palavras — as despesas são corrigidas pela inflação do ano anterior —, o novo arcabouço é cheio de ressalvas e desvãos que exigem, para calcular cenários, um algoritmo nada trivial. Os limites aos gastos são variáveis, sujeitos a critérios que despertam confusão mesmo entre economistas experientes.

Na essência, as despesas sempre aumentarão, entre 0,6% e 2,5% acima do PIB, numa proporção equivalente a no máximo 70% do aumento das receitas. Mas há uma quantidade enorme de exceções: 13 tipos de despesa não estarão sujeitas aos limites. Em especial, as garantias constitucionais para as áreas de saúde e educação farão com que essas rubricas orçamentárias cresçam mais, pressionando todas as outras.

Ao mesmo tempo, o projeto relaxa controles em vigor desde a Lei de Responsabilidade Fiscal, do ano 2000, eliminando a exigência das avaliações bimestrais de gastos que resultam em contingenciamento de despesas sempre que a meta de resultado primário está em risco. Desse modo, será mais difícil segurar a torneira dos gastos justamente nos momentos necessários.

Embora o projeto mantenha o compromisso com a meta de resultado primário — o objetivo é, de acordo com Haddad, zerar o déficit já em 2024 —, não cria sanção eficaz em caso de descumprimento. Apenas limita o crescimento das despesas no ano seguinte a 50% da alta de receitas apurada no ano anterior. Num universo em que a despesa cresce em qualquer situação, isso não é propriamente um incentivo à austeridade e ao controle dos gastos.

Reside precisamente nesse ponto a principal deficiência do arcabouço. Como as despesas sempre crescem — no mínimo 0,6% —, há um estímulo implícito ao governo para ampliar receitas se quiser cumprir as metas. Sem aumentar a arrecadação, as regras não sustentam a promessa de superávits.

Cálculos preliminares estimam ser necessários mais R$ 300 bilhões em impostos para cumprir os compromissos de Haddad. A arrecadação prevista em 2023 é de R$ 5,3 trilhões — e não é fácil ampliá-la, como mostra a confusão em torno da simples tentativa de acabar com a sonegação na compra em sites asiáticos, que renderia meros R$ 8 bilhões. Da forma como o projeto foi apresentado, portanto, há duas alternativas: ou as metas não serão cumpridas, ou haverá aumento brutal de carga tributária, que o Congresso precisará aprovar.