O Globo, n. 32761, 18/04/2023. Opinião, p. 2

‘Neutralidade’ de Lula revela apoio tácito à Rússia



Os últimos movimentos do presidente Luiz Inácio Lula da Silva em relação à guerra na Ucrânia demonstram não a neutralidade que ele e o Itamaraty afirmam manter em relação ao conflito, mas uma posição tacitamente favorável aos interesses da Rússia. Ao assumi-la, Lula comete erros de ordem factual, moral e diplomática.

Na escala em Abu Dhabi voltando da China, Lula afirmou que “a decisão da guerra foi tomada por dois países”, repetindo o que dissera no ano passado, quando afirmou que o ucraniano Volodymyr Zelensky é “tão responsável” pela guerra quanto o russo Vladimir Putin. Os fatos desmentem Lula. A Rússia invadiu o território ucraniano de modo injustificável e, desde então, a Ucrânia viveu um êxodo de quase um quinto da população e soma perto de 150 mil mortos. Putin é acusado pelo Tribunal Penal Internacional (TPI) de crimes contra a humanidade por massacres em território ucraniano. Ao pôr no mesmo patamar a agressão russa e a resistência ucraniana, Lula incorre em disparate semelhante ao de Donald Trump quando, diante da violência da extrema direita em Charlottesville em 2017, disse haver “gente ruim dos dois lados”. Não há comparação possível.

Mesmo que tenha tentado consertar dizendo que a Rússia não poderá ficar com todo o território ucraniano conquistado, sua simpatia pelo lado russo é evidente. Para começar, ele tem repetido que a Ucrânia não poderá voltar a ocupar a Crimeia, anexada em 2014. Levando em conta a evolução do conflito, é provável que tenha razão. Mas, se Lula deseja se credenciar como negociador da paz e reivindica “neutralidade”, no mínimo não deveria manifestar opinião sobre concessões (a Ucrânia reivindica soberania sobre a Crimeia e territórios ocupados).

Além disso, enviou para encontrar Putin seu assessor especial e homem de confiança Celso Amorim. Nesta segunda-feira recebeu em Brasília o chanceler russo Sergei Lavrov. Nenhum movimento similar de aproximação foi feito em direção aos ucranianos. Ao contrário, Lula rejeitou enviar-lhes munição e criticou americanos e europeus por continuarem a armá-los. Em seu apoio a cada dia menos velado à Rússia, vai além até do antecessor, Jair Bolsonaro, que visitou Putin, mas às vésperas da invasão.

Nada disso quer dizer que, como princípio, a neutralidade esteja errada. Embora o Brasil deva empenhar solidariedade à Ucrânia — regime democrático atacado por uma autocracia —, pragmatismo também é valor essencial em política externa. Não interessa ao país assumir lado no conflito subjacente, entre Estados Unidos (pró-Ucrânia) e China (pró-Rússia). No discurso, Lula tenta imitar os não alinhados da Guerra Fria. De um lado, flerta com o americano Joe Biden, outro líder de uma democracia agredida por extremistas. De outro, proclama uma moeda alternativa à hegemonia do dólar, num aceno ao chinês Xi Jinping. Mas, se comercialmente o Brasil tem muito a ganhar com a aproximação da China, nada leva com o apoio à Rússia.

A tradição de não alinhamento poderia ser seguida de modo mais produtivo em questões onde a voz do Brasil importa, como mudanças climáticas ou transição na Venezuela. Em vez disso, dentre quase 130 “neutros” no conflito ucraniano, o Brasil é o único que se meteu a criar um “clube da paz” e flerta abertamente com a Rússia.