O Globo, n. 32758, 15/04/2023. Política, p. 4

Atrito em casa

Sérgio Roxo
Jeniffer Gularte
Lauriberto Pompeu


Contrariando a agenda governista, o PT prepara uma ofensiva nos próximos meses sobre as principais propostas do Executivo que vão tramitar no Congresso. A iniciativa representa mais uma dificuldade para o terceiro mandato de Luiz Inácio Lula da Silva, que já terá trabalho para vencer resistências anunciadas por outras siglas da base e pelo Centrão em aprovar uma série de medidas. Na queda de braço sobre o arcabouço fiscal, o PT quer evitar que a nova regra e a reforma tributária sejam apresentadas de forma que entrem em choque com bandeiras de esquerda do partido. Há uma preocupação, por exemplo, com o limitador de investimentos idealizado pelo ministro da Fazenda, Fernando Haddad, o que, na visão de uma ala do PT, comprometeria o cumprimento das promessas de campanha. O deputado Lindbergh Farias (RJ) pontua que a preocupação é evitar um “aperto fiscal que dificulte a recuperação econômica”. Também há incômodo com a ideia, em gestação na Fazenda, de desvincular da receita os gastos do governo com saúde e educação, como previsto na Constituição.

— Fui surpreendida com uma declaração do secretário do Tesouro (Rogério Ceron) de que iriam modificar ou desconstitucionalizar os pisos da educação e saúde. Isso é muito complicado para nós. É uma bandeira histórica do partido. O ministro (Haddad) nunca falou sobre isso conosco. Espero que o debate não seja encaminhado dessa forma — afirmou ao GLOBO a presidente do PT, a deputada Gleisi Hoffmann (PR).

Crise dos combustíveis

Em várias frentes, os casos de descontentamento entre PT e governo se sucedem. No fim de fevereiro, por exemplo, Haddad estava na Índia, onde participava de um encontro do G-20, quando soube que a presidente do PT havia postado nas redes sociais uma manifestação enfática em favor do adiamento da volta dos impostos sobre os combustíveis, tema que pretendia discutir com Lula quando voltasse ao país. Irritado, o ministro ligou para reclamar e pediu a ela que, antes de tratar de assuntos que dizem respeito à Fazenda, conversasse com ele. A rixa sobre os combustíveis é ilustrativa de um debate mais amplo: a Medida Provisória que retomou os tributos encontra resistências também , por exemplo, no União Brasil, terceira maior bancada da Câmara, com 59 deputados — a sigla carrega como bandeira a redução da carga tributária. A adversidade é traduzida pelo deputado Felipe Carreras (PSB-PE), líder do superbloco formado pelo presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), PP, PSB, PDT, União Brasil, Solidariedade, Avante, Patriota, PSDB e Cidadania —são 173 parlamentares. Segundo Carreras, a adesão do grupo vai depender dos projetos apresentados:

— A gente ainda tem muitas dificuldades a serem superadas. Haverá totalidade dos votos em algumas propostas, mas em outras talvez não tenha.

No horizonte, ainda há outra ordem de percalços para o governo administrar, como a tramitação da Medida Provisória que extingue a Funasa, o que gera resistências dos partidos de centro. Outro ponto de atenção é o texto que criou a atual estrutura da Esplanada e, por exemplo, passou a Companhia Nacional de Abastecimento (Conab) da Agricultura para o Desenvolvimento Agrário. A Conab, responsável por supervisionar o Plano Safra, programa que concede crédito a pequenos e médios produtores, foi entregue ao ex-deputado Edegar Pretto (PT-RS), com ligações históricas com o MST. Parlamentares já apresentaram emendas propondo o retorno à Agricultura, pasta comandada pelo PSD.

Além disso, em meados do mês passado, o MDB aprovou um documento em que diz que dará suporte às medidas encaminhadas pelo Executivo, “sem jamais deixar de fazer as críticas quando necessário”. O texto fala ainda em “respeito à propriedade privada” e ao “agronegócio”. Em outro foco de embate, Lira já anunciou que a Casa não aceitará retrocessos no marco do saneamento, modificado por um decreto de Lula. O presidente da Câmara já havia advertido, em outra ocasião, para a base “inconsistente” do Planalto.

No campo dos impostos, petistas preveem também que a discussão da reforma tributária será tensa. Um dos temores é que o fatiamento da proposta, como planejado pela Fazenda, faça com que o Congresso acabe não mexendo com a questão da renda e patrimônio, um dos pontos centrais para o partido. O deputado e ex-presidente do PT Rui Falcão (SP) defende que a implantação da unificação de ICMS, ISS e impostos federais, prevista originalmente na primeira fase, seja condicionada à aprovação da reforma da renda e patrimônio.

Na lista de pautas que podem gerar ruído com o partido do presidente está ainda a relação do Planalto com o MST e as discussões sobre reforma agrária, a política de preços da Petrobras e a relação com militares.

“Lula é pragmático”

Integrantes de outros partidos da base enxergam na postura do PT um movimento para não perder espaço na esquerda para siglas como o PSOL. Enquanto isso, há o alerta de que o sucesso do governo pode estar atrelado a um discurso de centro.

— O discurso para a militância está cada vez mais claro que caberá à Gleisi — afirma o líder do União no Senado, Efraim Filho (PB). Para o senador Omar Aziz (PSD-BA), o presidente sabe que não há como atender a todas as demandas :

— Não será imposto ao Brasil a tendência ideológica de qualquer partido, seja de esquerda ou de direita. Lula é pragmático. Como O GLOBO mostrou na quinta-feira, o Planalto terá que administrar ainda a briga por espaço orçamentário. Parlamentares de MDB, PSD e União Brasil, siglas que controlam ministérios, vêm pleiteando o remanejamento de estruturas e programas. Em um dos casos, emedebistas querem transferir o setor de hidrovias, que tem orçamento de R$ 1 bilhão e e hoje está na alçada do ministro de Portos e Aeroportos, Márcio França (PSB), para o Ministério dos Transportes, comandado por Renan Filho (MDB). Com as disputas internas a pleno vapor, Gleisi minimiza a possibilidade de as resistências apresentadas pelo PT atrapalharem o governo no Congresso.

— Não há nenhuma posição de confrontar governo e o Haddad. Nós votaremos com o governo. Mas queremos levantar aspectos e discutir.