O Globo, n. 32758, 15/04/2023. Mundo, p. 16

Neutralidade pró - China

Marcelo Ninio


Se o plano do governo brasileiro era marcar em grande estilo o “relançamento” das relações com a China, após o afastamento causado pelos tropeços de Jair Bolsonaro, a visita do presidente Luiz Inácio Lula da Silva foi um grande sucesso. Em seus discursos, Lula não cansou de enaltecer a importância da parceria estratégica com o sócio comercial número um do Brasil, desdenhou da pressão dos EUA pelo boicote à China e questionou a hegemonia americana em críticas ao domínio do dólar, o que pareceu estar em perfeita sintonia com a multipolaridade defendida por Pequim.

Conversa mais longa

Mas se havia o desejo de manter um tom de equidistância em meio à rivalidade crescente entre China e EUA, a impressão que a visita deixa é de uma inclinação para o lado de Pequim, algo que os integrantes da comitiva brasileira negaram. Na declaração conjunta divulgada ao final da visita, os dois países “reafirmaram o compromisso de promover a democratização das relações internacionais e o multilateralismo”, princípios que aparecem quase diariamente no discurso da China. E, pouco antes de deixar Pequim na manhã deste sábado (noite de ontem no Brasil), Lula fez uma forte crítica aos EUA, acusando o país de “incentivar” a guerra na Ucrânia.

O governo chinês retribuiu com uma recepção à altura da expectativa de uma virada de página, com uma conversa bem mais longa que a planejada entre Lula e o líder do país, Xi Jinping, o compromisso reiterado com a “parceria estratégica” entre os países e uma cerimônia de boas-vindas com pompa máxima, com direito à música “Novo Tempo”, de Ivan Lins, tocada por uma banda militar. Entre os acordos assinados, um empréstimo de R$ 6,5 bilhões do Banco de Desenvolvimento da China, um protocolo para a produção conjunta de um novo satélite e cooperação para facilitar comércio e investimentos.

O ministro da Fazenda, Fernando Haddad, estimou em R$ 50 bilhões o total de investimentos gerados a partir de acordos alinhavados durante a visita, que incluem dois projetos na Bahia, a ponte SalvadorItaparica pela Companhia Chinesa de Construção e Comunicações (CCCC) e a instalação da montadora de carros elétricos BYD na antiga fábrica da Ford em Camaçari. O tom dos discursos de Lula e o volume de possíveis negócios com a China sugeriram uma aproximação maior com Pequim na comparação com a visita de Lula aos EUA em fevereiro, em que não houve anúncios de investimentos.

Aproximação com cautela

Haddad negou que isso indique um distanciamento de parceiros do Ocidente.

— Nós não temos nenhuma intenção de nos afastar de quem quer que seja, sobretudo de um parceiro da qualidade dos EUA. Estamos fazendo um esforço de aproximação, queremos investimentos dos EUA, mas estamos vivendo um momento de desinvestimento, empresas americanas deixaram o Brasil. Mas nós queremos estabelecer as melhores relações e parcerias com os três grandes blocos comerciais: os EUA, a União Europeia e a China.

Embora a declaração conjunta ressalte o interesse em aprofundar a parceria estratégica, o Brasil mostrou cautela ao não se comprometer formalmente com programas associados à ambição geopolítica chinesa, o que poderia gerar desconforto ainda maior em sua relação com os EUA. Frustrando a expectativa de Pequim, não houve adesão à chamada “Nova Rota da Seda”, o megaprojeto de infraestrutura que se tornou uma das bandeiras da diplomacia econômica de Xi Jinping. Na declaração, o Brasil diz apenas estar disposto a “examinar sinergias” entre suas políticas de desenvolvimento e o projeto chinês.

Mas se houve o cuidado de não pôr a assinatura do Brasil em iniciativas que pudessem indicar um alinhamento com Pequim, nos discursos de Lula não faltaram garantias de que o país resistirá a pressões para aderir a boicotes promovidos pelos EUA contra a China. No início do encontro com Xi, o brasileiro citou a visita que fez na quinta-feira, em Xangai, à gigante de tecnologia Huawei, banida nos EUA. A empresa tornou-se um dos principais alvos americanos na disputa tecnológica com a China e esteve perto de ser vetada nas redes de telefonia 5G do Brasil no governo Bolsonaro.

— Fizemos uma visita à Huawei numa demonstração de que nós queremos dizer ao mundo que não temos preconceito na nossa relação como os chineses e que ninguém vai proibir que o Brasil aprimore sua relação com a China —disse Lula ao presidente chinês.

Em suas palavras iniciais no seu encontro com Lula, Xi não falou muito de relações bilaterais. Preferiu se concentrar nas ambiçoes chinesas e de como o Brasil pode se beneficiar do “novo paradigma de desenvolvimento” promovido por Pequim.

— O Partido Comunista da China está liderando a nação em um esforço conjunto para transformar a China em um grande país socialista moderno em todos os respeitos e para avançar o rejuvenescimento nacional em todas as frentes por meio de um caminho para a modernização — disse o presidente. —Nessa jornada, a China irá buscar um desenvolvimento de alta qualidade, acelerar a criação de um novo paradigma de desenvolvimento e promover uma abertura de alta qualidade. Isso irá destravar novas oportunidades para o Brasil e outros países ao redor do mundo.

Sem entrevista coletiva

Xi expressou confiança de que uma relação China-Brasil que continue a desfrutar de crescimento sólido tende a desempenhar um importante e positivo papel para a estabilidade e prosperidade de suas regiões e do mundo.

Segundo membros da comitiva brasileira, “houve química” entre Lula e Xi, demonstrada pelo encontro que os dois tiveram, bem mais longo que o programado. A conversa de quase duas horas se estendeu por mais duas no banquete oferecido a Lula, em que o governo chinês buscou ganhar os brasileiros pelo estômago — com pratos como sopa de fungo com lagosta e o tradicional Pato de Pequim — e pelo ouvido, com uma seleção de canções brasileiras tocadas pela banda militar. Para completar, a ministra da Cultura, Margareth Menezes, cantou à capela “Luz do Sol”, de Caetano Veloso. Xi e Lula não pararam de conversar durante todo o jantar, relatou um dos convidados.

Após dois dias de intensa programação, Lula iria concluir sua passagem pela China com uma entrevista coletiva na Embaixada do Brasil em Pequim, cancelada no último minuto. O embaixador do Brasil na China, Marcos Galvão, afirmou que Lula estava cansado, por isso decidiu faltar à coletiva, deixando no ar uma sensação de anticlímax.

No entanto, ao partir para Abu Dhabi, nos Emirados Árabes, na manhã deste sábado, Lula acabou falando com os repórteres, e fez críticas ao papel dos Estados Unidos na guerra na Ucrânia. Uma das questões que mais interessavam aos jornalistas era sobre como foi a conversa de Lula com Xi sobre os esforços para negociar a paz no conflito, nos quais o Brasil aspira ter um papel.

O presidente brasileiro disse que os EUA precisam parar de incentivar a guerra para que possa haver uma solução à crise na Ucrânia. Ele disse que conversou longamente com Xi sobre o tema. Lula voltou a mencionar sua proposta de formar um grupo de países neutros para mediar o fim do conflito, tema que ele disse já ter levantado com o chanceler da Alemanha, Olaf Scholz, e os presidentes da França, Emmanuel Macron, e dos Estados Unidos, Joe Biden.

— É preciso que os EUA parem de incentivar a guerra e comecem a falar em paz. É preciso que a União Europeia comece a falar em paz, para a gente poder convencer [o presidente da Rússia, Vladimir] Putin e [o presidente da Ucrânia, Volodymyr] Zelensky que a paz interessa a todo mundo e que a guerra por enquanto só está interessando aos dois.

Vagos sobre Ucrânia

A declaração conjunta foi vaga sobre o conflito e não continha críticas à invasão russa. O documento incluiu uma troca de elogios às posições de ambos os lados, com um ponto em comum: “diálogo e negociação são a única saída viável para a crise”. Há ainda uma possível indicação nas entrelinhas de apoio à ideia do Brasil de um “clube da paz”, com um apelo a que “mais países desempenhem papel construtivo para a promoção da solução política da crise”.

A China tem se mostrado disposta a ter um papel mais ativo nas negociações enquanto evita criticar a invasão e mantém sua proximidade com Moscou, no que tem sido chamado de “neutralidade pró-Rússia”. O Brasil, que ao contrário da China apoiou a resolução da ONU pedindo a retirada da Rússia dos territórios ocupados, afirma na declaração conjunta que “recebeu positivamente” a proposta de Pequim sobre a guerra, na qual é defendido um cessar-fogo, mas sem qualquer menção a uma retirada russa.