O Estado de São Paulo, n. 46662, 20/07/2021. Economia p.A8

 

Estados driblam marco de saneamento para manter estatais sem licitação

 

Amanda Pupo

 

Pilar do marco legal do saneamento, a exigência de licitação para estatais fecharem novos contratos está sendo driblada por uma guerra de interpretações da nova lei. Pelo menos nove Estados – Amazonas, Ceará, Espírito Santo, Paraíba, Paraná, Pernambuco, Piauí, Rio Grande do Norte e Roraima – aprovaram os processos de regionalização dos serviços de água e esgoto numa modalidade que abre brecha à possibilidade de atuação das empresas estaduais públicas sem processo licitatório.

Em vigor há um ano, o novo marco foi pensado para estimular a participação das empresas privadas no setor. A regionalização dos serviços é uma das primeiras etapas para viabilizar esse processo .

A questão está longe de estar pacificada e opõe os agentes do segmento. A lei proibiu estatais do setor de fechar novos contratos sem licitação com os municípios. No entanto, o risco de o veto cair veio quando governos locais passaram a dividir os Estados em blocos de municípios por uma modalidade chamada microrregião, em que deve prevalecer o “interesse comum”.

A justificativa é que, nesse formato, a lei federal menciona que a titularidade dos serviços é também dos Estados. Com isso, o argumento é de que, sendo a estatal uma empresa do governo estadual, a prestação direta, sem concorrência, seria possível. O setor privado, no entanto, afirma que a interpretação está errada e já cogita acionar a Justiça caso as gestões estaduais avancem com a ideia.

Ao enviar para a Assembleia Legislativa do Amazonas o projeto que cria a microrregião no Estado, o governo Wilson Lima (PSC) afirmou que o texto era necessário para dar maior segurança à prestação de serviços, considerando a existência de “titularidade interfederativa” na microrregião, “o que autoriza a prestação direta dos serviços públicos de saneamento básico pela Companhia de Saneamento do Amazonas (Cosama)”.

A possibilidade também é analisada em Roraima. Para isso, o Estado avalia fazer a transferência acionária da estatal, a Companhia de Água e Esgotos de Roraima (Caer), para a microrregião. À reportagem, o governo local afirmou que a decisão, seja pela privatização ou pela criação de uma empresa do bloco (via transferência da Caer), será do colegiado da microrregião.

A regionalização porme iode microrregiões nos outros Estados não significa que todos entendam, porcon se quência, que aprestação direta pela estatal, sem concorrência, éu ma possibilidade. Por outro lado, a entidade que representa as estatais de saneamento confirmou que essa interpretação da lei é avaliada pela associação.

 

Manobra. Especialistas afirmam que a estratégia é uma manobra para Estados manterem as estatais com o monopólio dos serviços, mesmo debaixo de dúvida de que elas possam dar conta das metas de universalização do saneamento, prevista para 2033. Hoje, 16,3% da população não tem fornecimento de água potável e mais da metade não é atendida com tratamento de esgoto.

Um estudo da GO Associados apontou quepe lo menos dez companhias públicas de saneamento não atendem a um ou mais critérios exigidos pelo novo marco e pelo decreto que regulamenta a lei. As empresas do Amazonas e de Roraima estão entre elas.

“Isso, de fato, é uma possibilidade jurídica que tem se estudado. Agora, cada Estado tem sua autonomia para decidir não só a microrregião, masco mo sua interpretação da lei. Ale ié um fato novo, e ela estabelece em um dos seus artigos que o Estado é titular conjuntamente com o município quando há interesse comum e a microrregião. Sendo isso estabelecido, a empresa do Estado pode prestar diretamente”, disse o presidente da Associação Brasileira das Empresas Estaduais de Saneamento (Aesbe), Marcus Vinicius Neves.

A Associação Brasileira das Concessionárias Privadas de Serviços Públicos de Água e Esgoto( Abc on)a firma que atese não se sustenta. Uma vez que os municípios que formam a região de interesse comum, e são titulares do serviço junto do Estado, não são sócios da estatal, a delegação dos serviços a essa empresa exige, sim, uma licitação, defende a entidade .“Alei admite a prestação direta dos serviços, isso é fato. Mas ela demanda concorrência quando há concessão do serviço para outro operador”, afirmou o diretor executivo da Abcon, Percy Soares Neto.

No governo federal, o entendimento é que as companhias estaduais não podem prestar os serviços sem licitação. “O MDR (Ministério do Desenvolvimento Regional) não entende ser viável qualquer companhia estadual prestar à entidade microrregional serviços de saneamento”, afirmou o órgão .“Comoé de amplo conhecimento, éu ma diretriz do novo marco do saneamento o estímulo à concorrência”, disse a pasta.

 

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Governos descumprem prazo para divisão de cidades


Estados tinham até a semana passada para aprovar legislação; governo federal agora oferecerá consultoria

 

O marco legal do saneamento completou um ano com pelo menos sete Estados descumprindo um dos primeiros prazos determinados pela legislação. Os governadores tinham até a quinta-feira da semana passada para definir legalmente o formato de regionalização de saneamento em seus territórios.

Na prática, os governos locais precisam aprovar lei nas Assembleias Legislativas que divida os municípios em blocos para prestação dos serviços de água e esgoto. Com os atrasos, a União deve entrar de forma mais ativa nessa tarefa, mesmo que sem intervir diretamente, para auxiliar os Estados.

A formação dessas unidades regionais é uma obrigatoriedade do novo marco legal, responsável por abrir caminho para a iniciativa privada atuar com mais força num setor historicamente concentrado em companhias públicas. Por trás disso, está o conceito do "filé com osso". O objetivo é que cidades não atrativas financeiramente para exploração por empresas privadas não sejam escanteadas no processo de universalização, que deve acontecer até dezembro de 2033. Hoje, 16,3% da população não tem fornecimento de água potável e mais da metade não é atendida com tratamento de esgoto.

A própria lei define que, ao não ser respeitado o prazo de 15 de julho, a responsabilidade pelo processo de regionalização passa para as mãos da União. O governo federal decidiu adotar uma postura mais colaborativa com os Estados, sem assumir o protagonismo dessa função a partir de agora. Com isso em vista, vai fechar nos próximos dias com uma consultoria que auxiliará governos que ainda não conseguiram estabelecer suas unidades regionais de saneamento. A ideia é que, ao fim de sete meses, o modelo de regionalização esteja fechado para as localidades atendidas.

"Estamos com essa política de não confronto", disse o secretário Nacional de Saneamento, Pedro Maranhão, sobre a escolha do governo em não intervir diretamente nos Estados. Segundo ele, se algum tipo de "boicote" acontecer nesses locais, o governo federal vai usar o poder conferido pelo novo marco legal.

Apesar de o descumprimento do prazo de regionalização não gerar consequências sérias da noite para o dia, o fato aponta algumas dificuldades técnicas, e muitas vezes políticas, para o novo marco ser implantado. E há um efeito dominó. Com a demora na formação dos blocos, outros prazos começam a ficar apertados, como o da própria universalização. Além disso, a partir de 31 de março do próximo ano, quem não estiver regionalizado não poderá mais acessar recursos públicos federais e financiamentos com recursos da União./ A. P.

 

Consultoria

"Estamos com essa política de não confronto."

Pedro Maranhão

SECRETÁRIO NACIONAL DE SANEAMENTO