O Estado de São Paulo, n. 46662, 20/07/2021. Política p.A8

 

Plano para preservar bioma ainda é exceção

 

Júnior Moreira Bordalo

Daniel Rocha

 

Agricultor em Caxias do Sul (RS), Charles Venturin mantém em seu sítio uma “área estratégica” de Mata Atlântica. Um dos primeiros produtores rurais da cidade a seguir as orientações do Plano Municipal de Conservação e Recuperação da Mata Atlântica (PMMA), criado em 2012, ele aderiu a um cadastro ambiental e conseguiu informações valiosas do próprio terreno. “Conheci as áreas que tinha de preservar e, ao mesmo tempo, lugares onde posso cultivar”, disse o agricultor. Assim, conseguiu melhorar o gerenciamento do terreno dos Venturins rumo à produção orgânica e sustentável de uva, tomate e caqui. Charles, seus pais e a família do irmão cuidam da produção em 7,5 hectares.

Mas a experiência é exceção. Apenas 8% das cidades onde a Mata Atlântica ainda resiste no País têm um plano municipal de conservação. Levantamento da Fundação SOS Mata Atlântica mostra que, 15 anos depois da aprovação da lei que trata da preservação do bioma e orienta a criação dos planos, somente 271 dos 3.429 municípios brasileiros onde ainda restam áreas de floresta têm seu PMMA em execução ou elaboração. O plano não é obrigatório, mas, construído em parceria entre poder público e sociedade civil, orienta os municípios e a população sobre como preservar e recuperar o bioma por meio de ações públicas e privadas, conciliando o desenvolvimento econômico e social da região.

Segunda cidade mais populosa do Rio Grande do Sul, atrás apenas da capital, Porto Alegre, Caxias do Sul é responsável por 70% do mercado hortifrutigranjeiro do Estado. A cidade elaborou seu PMMA, em 2012, por iniciativa do Conselho Municipal de Defesa do Meio Ambiente. Na época, como parte do plano, foi determinada a realização de inventário da arborização urbana e o Cadastro Ambiental Rural. O cadastramento, realizado com suporte técnico da prefeitura de Caxias a partir de 2014, delimitou, por exemplo, áreas de preservação permanente e reserva legal de Mata Atlântica no município.

 

Reserva. Para Venturin, submeter seu sítio ao processo – assim como garantir uma área preservada – foi essencial. Dos 28 hectares do terreno, ele usa 7,5 nos cultivos protegidos. E não é difícil demonstrar o impacto da reserva na prática. “Por exemplo, a praga da mosca-das-frutas, que é muito comum na região. Consigo ter um controle por causa da minha reserva de mata. Se ela (mosca) encontra o local para colocar o ovo, não precisa vir na minha fruta. Conseguimos coexistir com produção e preservação.”

Participante da elaboração do plano de Caxias, a bióloga Vanise Sebben afirmou que, de início, a ideia de cadastramento provocou reações negativas. “Houve resistência do Sindicato Rural, que dizia que os agricultores não deveriam fazer o cadastramento porque seria um instrumento a mais de fiscalização. Eles não viam que o objetivo era a preservação”, disse a bióloga. “Tivemos esse desafio do convencimento.”

Caxias tem 6.252 propriedades mapeadas, das quais 86% apresentam a reserva legal da Mata Atlântica (equivalente a 20% da área total). “Como somos muito católicos, nos unimos até com as paróquias para falar na missa da importância de preservar o meio ambiente e que eles poderiam fazer o cadastro sem medo”, relatou Vanise. “E deu certo. Somos um dos municípios que mais têm reserva legal do Brasil. Sim, a gente consegue preservar e produzir.”

 

Perdas. Atualmente, restam apenas 12,4% da Mata Atlântica original no País. Entre 2019 e 2020, o desmatamento avançou cerca de 13 mil hectares e, entre os municípios recordistas de perdas, nenhum tem PMMA. “O plano ajuda os municípios a reconhecer onde há Mata Atlântica, quais áreas serão protegidas e quais serão restauradas”, afirmou o diretor de Conhecimento da Fundação SOS Mata Atlântica, Luis Fernando Guedes Pinto. “A ausência do plano fortalece o desmatamento.” Do total de 3.429 municípios brasileiros inseridos nesse bioma, 138 têm planos prontos, 63 cidades estão em elaboração e 70 estão em processo de implementação de seus planos.

Para Guedes Pinto, a baixa adesão é um retrato da falta de capacidade técnica e de conhecimento sobre o plano por parte dos gestores públicos. “Nem todas as prefeituras sabem que podem criar seus planos municipais. Há cidades que até têm esse conhecimento, mas não sabem como elaborar.” Ele destacou outro entrave para a elaboração dos planos, a ausência de conselhos municipais de meio ambiente. Trata-se de mecanismo crucial para a participação da sociedade civil: “(O plano de conservação) Pode até ser elaborado pelo poder público, mas precisa, necessariamente, ter o aval do conselho”.

A Lei da Mata Atlântica, de 2006, instituiu a elaboração do PMMA para que as cidades tenham um diagnóstico do bioma e possam avançar nas diretrizes e planejamento das políticas públicas, mas, também, como referência para atuação da iniciativa privada e da sociedade como um todo.

Para a engenheira sanitarista e ambiental e especialista em planos municipais de conservação Estela Boscov, os PMMAS são uma ferramenta essencial, mas sua adoção enfrenta uma barreira cultural, a ideia de que a natureza no Brasil é “infinita”. “Nós nos enxergamos como um país com um potencial incrível de recursos naturais.”

 

Parcerias. No esforço de apoiar cidades a criarem condições para construir seu próprio plano de conservação e desenvolvimento sustentável, uma parceria entre a SOS Mata Atlântica e a Suzano S.A. vai financiar organizações ambientalistas sem fins lucrativos de 35 cidades em SP, ES, BA e MG para que atuem em parceria com o poder público e a sociedade civil. O resultado do edital deve ser divulgado nos próximos dias. As entidades selecionadas terão 15 meses para desenvolver projetos.

Também em parceria com outras instituições, incluindo a ONU, o governo federal, a Frente Parlamentar Ambientalista, a Federação Nacional de Conselhos do Meio Ambiente e o governo da Alemanha, a SOS Mata Atlântica mantém um portal de monitoramento dos Planos Municipais de Conservação e Recuperação da Mata Atlântica.

Para o conselheiro da fundação, Mário Mantovani, o sucesso de Caxias do Sul está no fato de a população ter entendido a necessidade do plano. “A história do plano é que você traz aquilo que está na Constituição para a realidade do município. O pessoal falava: ‘Ah, vocês querem pôr a lei e não vou poder fazer nada’. Não. A lei permite o uso e proteção. Só incide na vegetação que foi regulamentada Estado por Estado, reconhecendo a variedade dos tipos que compõem a Mata Atlântica”, afirmou Mantovani.

 

“Conheci as áreas que tinha de preservar e, ao mesmo tempo, lugares onde posso cultivar. Conseguimos coexistir com produção e preservação.”

Charles venturin (com o filho Enzo),

AGRICULTOR DE CAXIAS DO SUL QUE ADERIU AO PLANO DE CONSERVAÇÃO E RECUPERAÇÃO DA MATA ATLÂNTICA

 

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Pesquisa mostra que desmatamento aumenta em anos eleitorais

 

Uma pesquisa da USP em parceria com a Universidade Duke (EUA) mostra que o desmatamento da Mata Atlântica costuma aumentar em anos eleitorais. O levantamento, publicado em junho, inclui o período de 1991 a 2014. Em média, o desmatamento sobe pelo menos 3% em anos eleitorais na comparação aos demais. Os pleitos municipais são aqueles com maior efeito na devastação do bioma, com crescimento médio de 4.409 hectares por ano no período analisado. Já nas eleições federais e estaduais, o aumento foi de 3.200 hectares.

O estudo, divulgado originalmente pela revista Conservation Letters, e, no Brasil, pelo portal Poder 360, analisou 2.253 cidades, de sete Estados: Minas Gerais, Espírito Santo, Rio, São Paulo, Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul a partir de dados do Mapbiomas entre 1991 e 2014. Os pesquisadores cruzaram as informações dos mapas com dados do Tribunal Superior Eleitoral (TSE).

No intervalo analisado, a taxa de desmate da Mata Atlântica foi de aproximadamente 136 mil hectares por ano. O aumento no período dos pleitos representa 3% em relação à média anual. O estudo destaca ainda que a área de mata derrubada era antiga, estabelecida e primária, conjunto de fatores importantes para a conservação da biodiversidade do entorno. Para o diretor da Fundação SOS Mata Atlântica, Luis Fernando Guedes Pinto, os resultados mostram que os órgãos de fiscalização ambiental devem sofrer pressão política em ano eleitoral. "Se a gente puder resumir: é uma troca de floresta por voto", afirmou. "As autoridades ambientais não estão dando conta de fiscalizar nem metade dos alertas que são gerados pelo Mapbiomas", disse ele. "Há um risco ainda mais grave no ano que vem para ter um aumento no desmatamento."